II- Dona

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Acordei com o despertador tocando, o turno da manhã já iria começar e eu estaria nele. Todos se levantaram e foram cuidar de suas coisas, já era costume, não importava se fossem para o vestiário ou para a cozinha primeiro, em 1 hora todos estariam prontos.

Fiquei na cama e gastei o máximo de tempo possível antes de precisar levantar, observei o dormitório e lamentei pela minha cama ser uma das únicas a ficar no chão, o que significava que eu sentia frio com mais frequência e usava mais cobertas que os outros, desvantagem de ter sido uma das últimas a se juntar ao grupo. A realidade era que eu dormia num colchão, bem diferente das várias beliches que tinham ali, eu nem poderia dizer que dormia em uma cama. Quando pressupus que o tempo estava curto, me levantei, e já que estava sem fome e não precisaria me apressar ou disputar lugar na pequena cozinha daquele galpão, fui direto para o vestiário e fiquei feliz por ao menos ninguém ter me olhado diferente, muitos ali talvez ainda nem soubessem sobre o que tinha acontecido no final da tarde do dia anterior.

Quando o alarme tocou novamente, todos se reuniram na sala e o porteiro chamou o nome de um por um, liberando os escalados da manhã para saírem. Aquilo servia para dividir as equipes, mas principalmente para contar as pessoas, garantir que ninguém tinha fugido ou saído sem permissão, controlar o fluxo.
Lá dentro tudo era extremamente rígido e controlado, ninguém saia sem que o porteiro soubesse e a Alexia ou o Erick permitissem, nada era feito sem permissão.

Observei todos saírem, até que só restou eu, o que era incomum. Alfonso, o nosso porteiro e um homem já de idade, por volta dos seus 60 anos, caminhou até mim a passos curtos e a todo momento evitou fazer contato visual.

— Desculpa te fazer esperar, é que não quis dizer na frente de todos, mas você não está no turno de hoje.

— Estou no da noite? — Ele olhou para o chão e coçou a cabeça.

— Também não, a dona Alexia tirou o seu nome ontem a noite.

— Dona é a senhora sua mãe — A voz vinha de trás, era ela.

Me virei, confusa, pude sentir minha testa franzir automaticamente, eu queria uma resposta.

— Por que não estou nos turnos? Isso é um castigo? — Perguntei e a observei estender o braço e entregar calmamente uma pilha de papéis nas mãos do Alfonso.

— Não está. — Me respondeu com tranquilidade na voz.

— Não é o que parece.

— Muitas coisas não são o que parecem. — Ela sorriu para o homem, que só se curvou em agradecimento e voltou para a sua cadeira ao lado do portão do galpão.

Alexia apoiou a mão no meu ombro, deu a volta até as minhas costas, me empurrou devagar e falou baixinho "Vem comigo", tão perto que pude sentir o ar atingir minha nuca pela lateral, o que me fez arrepiar.

Me levou até o escritório dela e fechou a porta atrás.

— Por que me tirou dos turnos? — Insisti em ter a resposta.

— O que você comeu hoje? Ou ontem?

— Alexia! Meu Deus! — Minhas mãos seguraram minha cabeça, estava ficando sem paciência — O que isso tem a ver?

— Eu sabia! Como acha que vai conseguir fazer o trabalho se sequer consegue fazer o básico para si mesma?

— Estou sem apetite, qual o problema nisso? Ainda sei o que consigo fazer ou não.

— É mesmo? — Ela riu com sarcasmo — Me desculpa, mas você não está liberada.

Ela foi bem clara, eu não poderia trabalhar, e se não fosse para trabalhar e ganhar dinheiro, então eu não tinha nada mais para fazer ali, precisava arrumar um jeito de ir embora, já que tentar argumentar não faria efeito, nada fazia Alexia mudar de opinião quando já estava decidida. Eu sabia que perderia qualquer discussão que tentasse ter, ela não me ouviria, e tudo nela afirmava isso, a postura, forma de falar, o olhar imponente.
Decidi me calar, não discutir, não argumentar, voltaria para o meu colchão e pensaria em alguma forma de sair dali.

Tentei passar por ela, mas ela bloqueou meu caminho e segurou meu pulso quando insisti em sair, o que me deu um pico de raiva, senti meu coração disparar e meus ombros tensionarem pela falta de respeito dela.

— Por favor, me solta. — Fechei meus olhos e tentei me acalmar, não deixar minhas emoções dominarem.

— Calma, senta.

— Não precisa, tá tudo bem, vou voltar para o dormitório. — Quis me soltar dela e seguir meu caminho, mas ela me bloqueou novamente.

Olhei nos olhos dela, e foi impossível imaginar o que ela queria com tudo aquilo. Senti raiva por tudo o que ela estava me fazendo passar, como se já não bastasse ter ficado suja com o sangue de um homem que tentei salvar. Fiquei decepcionada e frustrada por ter feito uma imagem diferente dela, achado que ela era mais razoável.

— Então vai me manter em cárcere privado?

— Não seria o meu primeiro crime.

Ela ainda segurava meu pulso com firmeza, e me olhava como a autoridade que era ali. Pela primeira vez senti medo dela e do que ela poderia fazer para manter a soberania e controle sobre mim. Congelei, e o lugar ficou em silêncio, me vi em uma posição onde minha única opção era fazer o que ela quisesse, não havia escolhas.

Sem quebrar o contato visual, e mantendo o olhar imponente, ela me puxou em direção à cadeira e me encarou até que eu me sentasse, quando fiz o que queria e ela se deu por satisfeita, deu a volta na mesa e se sentou em seu lugar, ficando de frente para mim, inclinou o tronco em minha direção e cruzou os dedos sobre a mesa, não desviou o olhar nem por um segundo, o que me fez arrepiar, temendo o que estava por vir.

— Você não vai trabalhar, não vai deixar o galpão e não vai sair da minha visão — Ordenou friamente, me mostrando um lado dela que eu ainda não conhecia. — Você pode achar que está sendo injustiçada, castigada, o que for, mas eu sei o que está sentindo, também já passei por isso, e é por esse motivo que fiz o que fiz. — A forma fria e calma com que ela falava me prendia em cada palavra, ao mesmo tempo que me assustava. — Se eu permitisse que você saísse, que trabalhasse, você não melhoraria, e poderia sofrer o efeito contrário, e caso isso acontecesse, eu teria comprometido você, e você comprometeria o nosso grupo. Já vi isso acontecer uma vez e não vou permitir que aconteça de novo, por isso você vai ficar aqui até se acalmar, vai ter que lidar com os ossos do ofício desse trabalho. E não se preocupe, ordenei que te deixem em paz, então não vai ouvir comentários de ninguém, também não irão te ajudar em nada que esteja pensando. Vai ter que lidar com isso sozinha e então veremos se Erick estava certo quando disse que você é fraca, ou se eu não me enganei sobre você.

Por mais dura que a Alexia estivesse sendo, ou por mais que eu precisasse do dinheiro dos trabalhos, achei que ela pudesse ter razão. Voltar para a rotina poderia acabar comigo, e se eu me tornasse um risco para o grupo, Erick certamente não me perdoaria e me eliminaria, como ouvi dizer que ele fez com várias outras pessoas. Irritá-lo mais ainda seria quase como assinar uma sentença de morte, e eu não ajudaria minha família se estivesse morta.

— Por quanto tempo quer que eu fique longe das ruas?

— O tempo que for necessário — Respondeu firme, mantendo sua postura rígida e os dedos cruzados sobre a mesa, deixando claro que era ela quem mandava naquele momento.

Olhei para os lados e observei atentamente o ambiente ao redor, verificando se não havia sinais de que alguém pudesse estar ouvindo nossa conversa. Tudo estava tão quieto e tranquilo como antes, o que me deu alguma segurança. Encarei Alexia mais uma vez e me perguntei se era seguro confiar nela. Naquele lugar, fazer amigos não era uma opção e eu tinha conhecimento disso, mas não tinha outra escolha, eu teria que arriscar confiar. Fui pega de surpresa pela atitude dela, e tudo dali para frente seria incerto, o tempo que ela queria que eu tirasse poderia durar dias ou semanas, mas minha família não podia esperar tanto, já fazia quase um mês desde que tinha mandando dinheiro para elas pela última vez, e as coisas estavam ficando difíceis para elas. Não podia me dar o luxo de fazê-las esperar mais.

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