01. a tempestade

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Era difícil enxergar com o para-brisa movimentando-se loucamente, como um instrumento vivo e dissimulado, enquanto a chuva pesada caia pela estrada. Os faróis dos carros pareciam pontos distantes de luz e vinham de uma vez, como um flash, e depois sumiam. O homem ao volante dirigia com os olhos cansados enquanto uma música aleatória tocava no rádio, sendo substituída pela voz de algum locutor preso no trabalho e logo depois voltando ao mesmo ciclo. Não sabia como a rádio ainda funcionava com essa chuva, ele pensou, concentrado em não sair da pista.

Fica com a gente, a programação da noite ainda não acabou! O temporal já dura há uma hora e não tem previsão para terminar, mas fique ligado aqui enquanto nosso sinal não cai! O locutor disse, soltando uma risada sem graça, mas o motorista já descia do carro coberto com um guarda-chuva enquanto ele falava. Não prestou atenção.

Jeongguk saiu correndo do carro estacionado na entrada da casa, indo em direção a porta e arrepiando pelo frio que fazia ao seu redor, o vento cortante invadindo suas roupas junto da chuva pesada e fria que desabava. Segurou o guarda-chuva com uma mão e enfiou a destra no bolso com desespero, procurando - tentando ser rápido - as chaves do chalé.

Puxou-as e, com dificuldade, manuseou o objeto com somente uma mão, alcançando a chave certa para a porta de entrada. Assim que adentrou a casa, fechou o guarda-chuva e o jogou no canto, permitindo-se respirar.

Ela estava como a havia deixado. Os móveis antigos, ainda que no mesmo lugar, estavam empoeirados com o singelo sinal de que não visitava aquele local há meses. Os cantos das paredes juntavam teias de aranha, a louça que esqueceu de guardar ainda na pia. Vou ter que lavar isso de novo... pensou enquanto tirava os sapatos. Uma borboleta presa pro lado de dentro da janela da cozinha. E, por último, mas não menos importante, ela.

Sua adega.

Jeongguk era um homem simples. Ainda que tivesse dinheiro, não fazia questão de gastar muito com nada. Não entendia a necessidade de dar mais dinheiro para marcas famosas de grife, ainda que suas funcionárias batessem na tecla de que ele devia ostentar um terno Gucci para audições e reuniões, mas não fazia diferença para ele. Também não se importava de andar com um carro que saiu há anos atrás, ainda que prezasse por sua qualidade. Ele era, de fato, o tipo de milionário que não parece milionário.

Exceto quando se tratava de seus vinhos.

Jeongguk deixava ali, trancada a 7 chaves - no sentido figurativo - sua tão amada e valorizada adega. Contendo aproximadamente 32 vinhos caríssimos (e aumentando!), era naquela pequena e pacata residência no meio do nada que ele guardava seu maior tesouro. Havia visto em alguma série que os nórdicos acreditavam que a bebida dos deuses é chamada de hidromel, mas ele discordava muito. Hidromel é forte, entorpecente e lembrava-se de ter lido algo sobre algum deus que a bebia sem parar. Ou tinha desafiado alguém a bebê-la até o fim, mas o copo enfeitiçado não permitia. Não se lembrava. Mas lembrava-se de rir com a ideia e discordar piamente. A bebida que deus devia beber era vermelha, viscosa, doce e viciante. Gostava de pensar nela correndo por suas veias como seu próprio sangue.

Ele não era um amante assíduo do álcool, não. Não bebia outra coisa além de vinho e diria que sua vida não teria novamente o mesmo sabor se vivesse sem bebê-la. Sorriu ao passar seus dedos delicadamente por cima do grande móvel, pensando em qual garrafa abriria hoje e sentindo uma pontada de ansiedade ao pensar em comprar mais. Se precisasse gastar seu salário de um mês em uma única garrafa de um bom, doce e velho vinho, não hesitaria. E não sentia vergonha. Tinha até um apelido para sua adega. Sua amada.

Olhou ao redor da pequena sala e pensou em sentar no sofá, mas seria impossível com todo esse pó. Ergueu os olhos ansioso para analisar sua outra - ainda que menos - amada e suspirou. Lá estava ela, sua grande estante de livros. Jeongguk nunca fora um leitor assíduo, do tipo que lê todos os dias para relaxar, mas sentia-se bem apenas em olhar para eles. Era difícil viver todos os dias enfurnado em uma sala gigantesca repleta de títulos, quadros caros e esculturas de sabe se lá o que, todas em tom de chumbo decorando as paredes brancas. Parecia um sanatório. Mas ali, não, ali ele via cores. Capas de todos os tons, títulos de todos os tipos, autores de todos os lugares.

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