III

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É uma noite agitada no Rio de Janeiro mas ele está acostumado com a algazarra infernal da cidade, não era o pior, nem muito menos o mais barulhento que ele já tinha escutado na vida. De qualquer jeito era estranho como Francisco conseguia dormir tranquilo mas nunca sonhar. Suas noites de sono eram cheias de paz, de uma escuridão silenciosa, ou pelo menos isso era o que ele lembrava. Fazia tempo que ele não pensava sobre sonhos e sobre a imaginação.

- Que droga, João. - Foi o último que disse antes de se render ao aos esforços da noite, que cedo ou tarde terminava conseguindo o que queria e o sono chegava.

Durante o dia tinha brigado com João, o garoto que trabalhava na banca de jornal e que vivia no apartamento de cima com a mãe. Aquele adolescente era provavelmente a única pessoa com quem ele realmente conversava, e provavelmente o ponto de maior animação em suas manhãs.

- Todo mundo sonha Seu Francisco. Você pode não lembrar, mas você sonha.

- Faz dois dias que você me vem com essa história. Eu não sonho, é tudo preto como o café aqui na minha mão.

- Como é que alguém tão velho e que viveu tanto não consegue sonhar, é uma coisa que eu nunca vou entender.

- Talvez não tem nada para entender.

- Talvez tem e o senhor não entendeu ainda.

- Ei, João.

- O quê?

- Vai a merda.

Um barulho quase surdo, passos no interior do apartamento. Francisco acorda surpreso mas não se assusta. Ele fica quieto, deitado em sua cama durante os primeiros segundos tentando identificar quem tinha entrado à força.

O som de vidro quebrado sendo pisado, a janela que dava acesso para a escada de incêndio era a única opção. Duas pessoas, não, eram três mas um deles era mais leve, parecia ter mais cuidado com o jeito de caminhar. Os outros dois pareciam desajeitados, caminhavam de forma agitada e imprudente. Francisco sai da cama, seus joelhos não são os mesmos que antes, seus braços não tem a mesma força de décadas atrás, mas ele é esperto, experiente. Ele sempre soube como e quando bater.

Do lado da cama encontra a vassoura de madeira e em silêncio, caminhando na ponta dos pés vai até a porta do quarto que estava entreaberta dando uma olhada antes de avançar, de lá consegue ver dois dos homens na cozinha abrindo os armários sem nenhum cuidado e rindo em silêncio de como estavam vazios.

Onde está o terceiro? Pensou Francisco enquanto observava a cena, o apartamento era pequeno, ele não teria onde se esconder. Talvez ele escutou errado? Às vezes acontecia isso, ele pensava que escutava, que sabia, que lembrava quando na verdade não tinha escutado, nem sabido, nem lembrado.

Então decide avançar e em poucos segundos, passa pelo sofá velho e a poltrona de imitação de couro, cruzando a pequena sala que dividia o quarto da cozinha para que em um só movimento preciso da vassoura, acerta a nuca do primeiro homem, que caí imediatamente, sangue manchando seus cabelos loiros.

O segundo que investigava a geladeira é pego de surpresa. Careca, olhos pequenos, nariz quebrado e orelhas inchadas, ele levanta as mãos com a direita a frente e a esquerda protegendo a lateral do rosto.

- Boxeador e canhoto? - perguntou Francisco reconhecendo a posição de seu adversário.

- Como você sabe? - respondeu com uma pergunta o homem que se mostrou não sendo muito inteligente.

Francisco segurava a vassoura que agora estava pela metade graças a força do primeiro golpe, com força enquanto caminhava de lado acompanhando os movimentos do homem, estudando seu alcance, medindo seu ataque. Planejando o próximo passo.

- Teus braços, a mão esquerda atrás, você tem pose de lutador e postura de canhoto, uma pena que não sabe usar os pés.

- Claro que sei.

Francisco apostava que nesse momento o invasor ia olhar para baixo e seria nesse espaço de um segundo que ele colocava a esperança de ter uma chance de atacar.

E funciona, o boxeador olha para baixo por um mísero segundo, dobra um pouco o joelho direito e rapidamente volta a olhar para cima, mas para esse momento Francisco já tinha dado o passo necessário e segurando sua arma com as duas mãos como se fosse uma lança, acerta um golpe certeiro em seu estômago. O homem se dobra de dor, Francisco levanta a vassoura para finalizar a luta mas é pego de surpresa com um golpe por trás, o velho cai no chão, a visão vai escurecendo e antes de ceder ao desmaio, observa como um par de pernas finas, usando uma calça preta de brim se aproxima caminhando com botas brilhantes da mesma cor. Eram três no apartamento.

Francisco acorda e não consegue se mover, está amarrado em sua poltrona de couro. Ele sente como a corda aperta seu pescoço, braços, abdômen e pernas. Não importava quando força fazia, aquele nó parecia ter sido feito por um profissional e o único que conseguia fazer era aumentar a dor de cabeça.

O golpe que o fez desmaiar foi forte e preciso, ele sentia o sabor metálico de sangue que descia do ferimento na lateral da cabeça e descia por seu rosto até sua boca. Experiente como é, tentava manter a calma, seus olhos começaram a se adaptar à escuridão e devagar podia reconhecer os dois homens de antes, o loiro com cara de poucos amigos segurando uma sacola de supermercado com cubos de gelo na cabeça e o boxeador careca com as mãos na barriga, os dois querendo arrancar ele daquela poltrona e terminar o serviço de uma vez, Francisco não conseguia esconder o sorriso malcriado.

Nesse instante escutou os mesmos passos cuidadosos de antes, o homem misterioso com botas brilhantes estava de novo atrás dele e ele nem suspeitou, aquela figura sombria agora caminhava ao redor da poltrona, um passo delicado de cada vez.

- Não esperava menos de você Chico. - o homem sorri, enquanto move com cuidado as revistas que se encontravam na mesinha de centro entre o sofá e a poltrona para poder se sentar nela - Sempre o lutador, cabra da peste, sempre pronto para o combate. Talvez quarenta anos atrás o resultado seria outro.

Era óbvio que aquele homem sabia quem ele era, mas Francisco não o conhecia, apertava os olhos tentando prestar atenção nos detalhes, cabelos ruivos como o fogo, curtos como um imperador romano, o sorriso de quem sabe vários segredos, os olhos de lua crescente deitada e um belo e grosso bigode imaculadamente bem cuidado eram completamente alheios a ele. E o homem percebeu isso.

- Ah, qual é Chico... Vai dizer agora que esqueceu de mim? Depois de todos esses anos, não me diga que você esqueceu da nossa pequena disputa. Olha, tenho que admitir que estou um pouco triste. - Suas palavras saiam da boca com uma certa mistura de desprezo e ironia, era a voz de um apostador compulsivo que nunca errou um palpite. - Mas fazer o que, o tempo acabou e agora estou com pressa. Me diz Francisco. Cadê?

- Eu não entendo... O que você quer? - Era difícil manter a concentração, a idade faz com que os pensamentos se misturem entre lembranças e ideias. Francisco queria lembrar, ele achava que lembrava, mas tinha muitas perguntas, poucas respostas e muita dor de cabeça.

- Não temos tempo pra isso Chico, você precisa se concentrar. Cadê a moeda?

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