III

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— O quê? — O seu olhar dardeja entre mim e a sua mulher. — Não brinquem comigo que isto não tem piada nenhuma!

— Temo que a sua mulher tenha razão — digo. 

Com estas palavras, viro-lhe costas e afasto a cascata de cabelos que me cobre o pescoço, expondo uma marca de nascimento. Uma que, segundo a minha mãe, é igualzinha à que o Erik tem no pescoço.

 O casal atrás de mim solta um arquejo antes de cobrir a boca com as mãos. Eu volto a cobrir o pescoço e a sentar-me no sofá.

— Como é que sabias? — pergunta Erik à mulher, com lágrimas a marejar-lhe os olhos.

— Tirando os olhos verdes, ela tem a tua cara. Mais até do que as nossas filhas.

Sinto a culpa traspassar-me o peito ao olhar para o casal tão abalado. 

— Peço imensa desculpa por ter aparecido aqui sem avisar, logo hoje. A sério. Mas a minha mãe deixou-me um caderno... — justifico. — Eu vou buscá-lo.

Levanto-me para ir ao hall de entrada, retornando em seguida. Quando me aproximo do Erik e da Astrid, ambos caídos no sofá, estendo o objeto que guardei com tanto carinho desde a morte da minha mãe.

— Ela deixou-me tudo planeado e tratado. Tinha até as aulas de norueguês e os bilhetes de avião e comboio pagos...

Deixo o silêncio voltar à sala enquanto o casal folheia o caderno com receio. Entretanto, as crianças voltam à divisão espaçosa, trazendo nas mãos um tabuleiro grande com copos de água e pratos de bolachas.

— Vai brincar com as tuas irmãs, Aud — pede a Astrid, distraía. A filha, sentindo o clima estranho, acata a ordem da mãe sem reclamar. 

Deixo de ser capaz de encarar o casal norueguês ao fim de alguns segundos e acabo por concentrar a minha atenção nos atacadores dos sapatos e no verniz azul das minha unhas.

Porque é que tinha de ser logo hoje, mãe?

— Porquê? —Levanto a cabeça para encarar Erik, sem perceber a sua pergunta vaga. — Porque é que a Blair não me disse nada? Porquê enviar-te agora, quase vinte anos depois? Não faz sentido!

— Ela...

— Ela devia ter-me contado! — corta ele, de novo. — Tínhamos arranjado uma maneira daquilo resultar. Ela não precisava de fugir nem de te criar sozinha!

— A minha mãe não podia contar-lhe! 

— Porquê? Porque é que não me poderia dizer que íamos ter uma filha?

Suspiro, tentando controlar os nervos. As frases das últimas conversas que tive com a minha mãe saltam-me à memória e eu encaro o casal no outro sofá com força e coragem renovadas.

— Eu conto tudo o que sei. Mas promete-me que só me interrompe no fim. Por muito estranho que isto lhe soe.

— Prometemos.

É a Astrid que responde pelo marido, mas  Erik acaba por concordar. Vejo nas suas caras o esforço para ficar recetivos às minhas próximas palavras e agradeço mentalmente por isso.

— Eu e a minha mãe somos descentes diretas daquelas que na Escócia, a nossa terra natal, são designadas de Damas Brancas. Um termo atual equivalente seria bruxas, se quiserem ver as coisas por esse prisma.

Erik abre a boca para comentar, mas uma mão levantada da minha parte e um toque da parte da sua mulher são suficientes para o manter fiel à sua promessa.

— A minha mãe era o que poderia ser chamada de bruxa dos desejos. Os seus poderes funcionavam apenas quando os corações humanos desejavam algo ardentemente, permitindo-lhe atender aos anseios de quem ela achasse digno. Contudo, os poderes das Damas Brancas são altruístas e nunca podem ser usados nelas próprias. E por causa desta Lei, a minha mãe não podia satisfazer o seu único desejo: ter um filho.

» A minha mãe era uma bruxa infértil. Por muito que tentasse, não conseguia engravidar. E isso deixava-a extremamente amargurada. Foi nessa altura que você a conheceu, Erik. Somos naturais da zona de Aberdeen e ela andava pela faculdade a satisfazer os desejos dos estudantes. Ela disse-me que se sentiu comovida pela sua generosidade e quis retribuí-la na medida do possível. A ideia dela era conceder-lhe um desejo, mas não havia nada que o seu coração gritasse desesperadamente. Isso obrigou-a a ficar mais tempo perto de si.

» Ela não andava na Universidade, mas para manter uma amizade consigo, fingiu estar matriculada. O tempo passou e não havia maneira de ela descobrir o que o seu coração desejava. Então ela levou-o à fonte dos desejos. Só quando ela obrigou a pensar no assunto para atirar a moeda à água é que a solução se revelou.

Erik começa a chorar em silêncio, abanando a sua cabeça para me dizer que se lembra daquele momento.

— Quando a sua moeda entrou na fonte, a minha mãe percebeu que queria ser pai e construir uma família. E ela viu aí a sua oportunidade. Apesar da ideia não lhe ter ocorrido de repente, a solução pareceu-lhe lógica: se ela usasse o seu próprio corpo para satisfazer o seu desejo, não estaria a infringir nenhuma Lei das Bruxas e estaria, simultaneamente, a realizar o seu sonho. Assim, na festa de espuma que assinalou o final da sua farsa, ela...

— Beijou-me. E eu beijei de volta. E acabámos a dormir juntos.

Eu assenti.

— Depois dessa noite ela teve de voltar para a nossa comunidade. Deixá-lo para trás foi das coisas que mais lhe custou na vida, especialmente depois de ter construído aquela amizade consigo. Mas ela não podia ficar. Nenhuma Dama Branca pode construir uma família com um humano sem a aprovação do Concelho. E ela não queria levá-lo a Concelho. Se não a aceitasse, morríamos os três. Se aceitasse, todas ficariam a saber que ela tinha usado as suas runas em proveito próprio e poderiam tirar-lhe os poderes, a ela e a mim. A única solução que ela viu foi fugir, mesmo que significasse que não veria o seu desejo a ser realizado, Erik.

O silêncio reina na sala enquanto eles tentam processar o meu discurso.

— Tu queres que acreditemos que tu e a tua mãe são... bruxas? Com poderes e tudo? —  pergunta a Astrid, incrédula.

Eu solto um suspiro, rindo de nervoso. Já estava à espera daquilo.

—  Sim...

—  Uma bruxa?! —  gritam umas vozinhas de repente.

Eu e o casal fitamos a entrada do corredor. Ali paradas estão quatro cabecinhas loiras, de olhos brilhantes e sorrisos rasgados.

1080 palavras

O desejo de uma Bruxa ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora