II - N a t e

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Todo Natal é bastante esquisito para mim. Quer dizer, a vida é bastante esquisita para mim. Eu sou esquisito. E desajeitado, mas o destino não colabora. Além disso eu tenho a mania de fazer piadas sem graça das quais ninguém ri. Eu finjo que isso não me afeta.

Vê-la aqui é quase surreal. E eu preciso fazer uma piadinha. Só depois que as palavras saem da minha boca eu percebo o quão ofensivas elas soam. O que minha mãe feminista diria se me ouvisse falar isso? Engulo em seco e sustento o olhar irritado de Hanna.

Eu já estou acostumado a ser encarado dessa forma, especialmente pela menina mais popular do colégio, mas nunca a sós. Ela sempre está em bando, seja com as colegas líderes de torcida ou com os jogadores do time da escola.

Vê-la na biblioteca, logo na véspera de Natal é... estranho. Ela não deveria estar em alguma festa, ficando louca igual a todas as outras adolescentes populares da escola? Por que está aqui? Estou tão curioso que começo a mover minha perna para cima e para baixo. Me seguro para não perguntar algo, já que não temos intimidade. A curiosidade me corrói por dentro.

Hanna arqueia tanto as sobrancelhas que eu preciso desviar o olhar.

Eu sempre fui fraco por esse olhar. O dela, lógico. Na verdade eu sempre fui apaixonado por ela. Sempre estudamos juntos e lembro perfeitamente de alguns acontecimentos que me fizeram gostar ainda mais de Hanna, mesmo que ela nem me enxergasse direito como um garoto e sim como apenas um colega de quem ela não queria ser amigo. 

Aos 10 anos eu sofri meu acidente e, naquela época, Hanna me enviou todas as atividades que deveriam ser feitas para a escola. Ela deixava o caderno dela com meu pai e ele me trazia para que eu copiasse os conteúdos. As folhas cheiravam a chocolate, o mesmo cheiro do cabelo dela. Eu passava horas abraçado a ele como um idiota, mas, em minha defesa eu tinha só 10 anos e eu não sabia se aquilo era amor mesmo. 

Até hoje eu só sei que, toda vez que a vejo, seja de longe ou de perto, meu coração faz uma coisa estranha, como um salto no ar e, logo em seguida, aperta. Acho que é uma paixonite. 

━Não sabia que nerds esquisitos tocavam piano, ela rebate meu comentário infeliz. 

Ficamos nos encarando, eu com a boca aberta, processando o que ela acaba de dizer, e ela com um olhar penetrante, maldoso e típico.

Muitas vezes ela finge que não me vê na escola e eu finjo que não sou afetado nem um pouco pelo jeito extrovertido e animado dela. 

Eu tento disfarçar, para que ninguém perceba, o quanto meus olhos ficam grudados nela a cada apresentação do time de futebol. Mas ninguém realmente presta atenção em mim, então nunca há o que temer. 

Mas algo que eu pergunto todos os dias é o motivo pelo qual ela é líder de torcida. 

Hanna é muito boa em matemática e ela poderia estar em um clube que valorizasse suas capacidades mentais. Ao invés disso, ela dança para o time. Não que isso seja ruim, eu adoro vê-la dançar e ela é muito boa nisso, mas acho um desperdício da sua inteligência. Não é como se minha opinião importasse mesmo, então sempre mantive essa opinião para mim mesmo.

━Por que está aqui?

Como sempre, mais uma pergunta idiota sai da minha boca. Hanna olha ao redor com os olhos ainda semicerrados. Será que ela pensa que eu vou pregar uma peça nela, ou que estou fazendo uma piada?

A bibliotecária havia me pedido para cuidar da biblioteca, alguns minutos atrás, e pego-a olhando para a mesa onde a Sra. Weiss sempre fica. Não há ninguém aqui além de nós dois e é exatamente por isso que estou "cuidando" do lugar. A sra. Weiss me disse que precisava ir até a casa dela, que fica uns bons kilômetros distante da biblioteca, e acrescentou que eu não teria problemas, pois no Natal ninguém quase nunca vinha aqui.

━É proibido vir aqui? -Hanna replica em um tom nada amigável

Eu suspiro, sem energias para brigar. Hanna sempre fica na defensiva durante as conversas, sempre observei-a discutir de longe, o que me faz pensar se há alguma razão para ela reagir assim. Ou será que é apenas comigo? Será que Justin, o ex-namorado babaca, também recebia esse tratamento passivo-agressivo?

Mas o que eu estou fazendo, me comparando com o ex-namorado quarterback dela? Ele é o dobro do meu tamanho! Pigarreio antes de responder:

━Não, só é estranho vir aqui hoje, porque é Natal.

Ela caminha até uma estante próxima. A sessão de ficção científica. É a minha vez de arquear as sobrancelhas. 

Uma pergunta cresce em minha mente: o que será que ela lê? Poucos minutos atrás eu nem sabia que ela lia! Cyberpunk não faz o gênero dela, tenho certeza.

Hanna volta até meu lado com uma expressão de poucos amigos e revira os olhos na minha frente. Ela faz isso rapidamente, me reduzindo a nada ali, diante dos seu olhar cor de chocolate. Nunca estive tão próximo dela... Agora percebo que parecem duas avelãs me encarando com impaciência. 

Ela se inclina sobre o piano e apoia uma das mãos na madeira escura. Está tão próxima que eu consigo sentir o cheiro de... Chocolate do cabelo dela! O odor me leva para memórias antigas e ingênuas.

━Por que você está aqui então, Nathaniel?

Hanna diz o meu nome tão pausadamente que sinto meu coração acelerar involuntariamente. Mas quando abro a boca para responder, nós dois tomamos um susto. As luzes coloridas começam a piscar. Através da janela a neve começa a cair em proporções gigantescas. O vento forte força os galhos das árvores, quase quebrando-os.

Encaramos a janela com certo choque. Então eu lembro: há uma nevasca prevista para hoje.

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