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Itália, 31 de Dezembro de 2019.

- Tá bom, tá bom. Eu sou péssima escolhendo roupas. Admiti, satisfeita agora?- Meu dia não poderia ficar pior. Desde umas sete da manhã eu estava provando vestidos por causa da minha mãe, e já era quase meio dia. Todos os tecidos eram diferentes, e as cores também. Eu já tinha experimentado uns 3 guardarroupas e nada parecia confortável pra mim.

- Queria que você fosse um pouquinho mais feminina pelo menos uma vez na vida, Hazel. É pedir demais?- Ela parecia tão irritada quanto eu.- Será uma festa de final de ano em família, meu bem. Não uma daquelas suas reuniões malucas com a ISS.

- Pelo menos na ISS consigo vestir o que eu gosto, e as roupas são confortáveis. Enfim, azul ou branco?- Estendi dois outros vestidos, já tendo escolhido mentalmente a cor, independente de qual ela apontasse.

Ela se afastou um pouco do espelho em que eu estava me olhando, e ficou mais próxima da janela. Os poucos raios de sol que passavam pelas cortinas pousavam sobre os traços joviais dela, apesar de ter quase 50. Seus cabelos ondulados refletiam a luz, com um brilho castanho-avermelhado que dava um ar majestoso ao seu rosto. Apesar de bela, tinha um ar preocupado.

- Eu quero o azul.- disse ela, sem olhar pra mim, fitando apenas o que quer que estivesse através da janela.- Será que estaremos prontos quando ele chegar aqui?

- Quando o que chegar aqui?- franzi o cenho.

-Você sabe. O vírus. Não sei se a China vai conseguir contê-lo dentro do próprio país por muito tempo. E a coisa toda começou em novembro, estamos no ano novo e eles ainda não conseguiram controlar tudo.- ela segurou o pingente que estava no colar dela, arrastando ele de um lado pro outro no cordão.

-Não sei, acho que vai ficar tudo bem.- Suspirei. Joguei o vestido de volta na cama.- É ano novo, mãe. Tenta não pensar muito nisso pelo menos hoje, tá bom?- Cheguei mais perto dela na janela. Segurei seus ombros.- Vai ficar tudo bem, eles são bons no que fazem.

Ela sorriu pra mim, um sorriso cansado. Seu rosto começou a se deformar.

- Mãe?- minha voz soou mais trêmula que o normal.- Mãe, o que a senhora tá sentindo?- segurei suas mãos, mas seu corpo começou a...desintegrar? Rápido demais pra que eu conseguisse segurá-la, ou conseguisse fazer qualquer outra coisa.

De repente senti o ar mais gelado, as luzes apagadas. Tentei andar devagar, pisar com cuidado, mas meus passos ecoavam alto demais no que parecia ser um corredor sem fim. Quando as luzes finalmente foram acesas, parei de correr. Uma porta se materializou no final do corredor, e eu segui receosa até ela.

Flexionei a maçaneta, e abri a porta lentamente. Eu conseguia ouvir o que parecia ser uma máquina, uma ventilação mecânica, seguido por gemidos de dor. Minha mãe estava na maca, com olheiras tão grandes quanto minha aflição, e um olhar perdido. Ela tentou erguer a mão um pouco acima da cama, mas logo desabou de volta. Apertei seus dedos gelados, sentindo a atmosfera pesada do leito. Ela me fitava, com um olhar curioso e ao mesmo tempo sem vida, sem motivação pra continuar, como quem sentia o seu final inevitável e compreendia isso em todos os sentidos - e abraçava a ideia, com carinho. Os tubos não permitiam que ela falasse uma palavra. Ficamos assim até a sala começar a derreter e nos engolir, sem piedade alguma. Rápido demais pra que eu conseguisse reagir.

Fechei os olhos com força, ainda segurando sua mão, mas o ar mudou outra vez, se tornando mórbido. Era um necrotério. Andei por entre as macas por um tempo, os corredores apinhados de corpos em sacos brancos, sobre macas de um metal frio. Placas com letras em caixa alta acima dos cadáveres mostravam a causa da morte - o vírus. Parei, olhando ao redor. Pilhas de corpos, pilhas de projetos interrompidos.

Comecei a me sentir tonta, e um gosto leve de sangue e ferro dominaram minha língua. Me apoiei numa maca à frente, mas na parede um pouco acima da cabeça do cadáver naquela maca estava escrito "Beatrice Marie Fletcher". Era ela. Me afastei instintivamente do corpo da minha mãe, e as coisas começaram a girar ainda mais. Um bipe ensurdecedor surgiu, não sei de onde, mas ele não parava. Rápido demais pra que eu conseguisse registrar qualquer outra coisa ao redor.

Eu caí no chão, os bipes cadenciados eram dolorosos e pareciam consumir cada terminal nervoso do meu corpo, enquanto eu tentava desesperadamente manter a consciência, como se a dor fosse uma extensão palpável de minha existência e eu não pudesse fazer nada para amenizar.

E então, eu acordei.

Saí da cápsula depois de soltar os cintos que prendiam meu tórax à parede interna da nave, fui até a janela mais próxima. Minha tripulação inteira tomava café no compartimento ao lado, as conversas aconteciam simultaneamente ao som de "How big, How Blue, How Beautiful". Encarei a bola azul lá embaixo. A paz que a cor da Terra transmitia, mesmo que só por alguns segundos, mascarava o caos que ela tinha se tornado graças à raça humana.

"Ela era virologista, sua imbecil"- pensei comigo mesma.- "Ela sabia."

Levei minha mão até minha agenda no bolso direito. Com uma capa de um material resistente, de cor preta, tinha impresso em baixo relevo o número "2026". Foi tudo rápido demais.

Rápido demais.

With love, HazelOnde histórias criam vida. Descubra agora