τέσσερα

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   A morte a espreitava

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   A morte a espreitava. 

   Ela a sentia no congelar lento dos ares nos pulmões e no silêncio constante da clareira. Sentia-a no ranger dos ossos e no escorrer do nariz, no medo da fome e na preocupação da noite. 

   A morte a escoltava. Sempre a seguira, desde os verões férteis aos invernos hibernosos. E ela respondia à altura, caçando e matando, estripando e esfolando. Ela não se arrependia. Nunca se arrependeria. 

   Mas era difícil.

    Ela acordara muito mais cedo do que o sol naquele dia, hesitando por mais uns instantes no fogo aceso do chalé antes de marchar para a colina enrelada. A noite quase a engolira por completo quando enfim avistou a corça saltitando pelos pinheiros, se empertigando tanto com o alívio que quase despencou do tronco que escalara. Era ainda jovem demais, quase não desenvolvera completamente as pintas ao redor do corpo, mas era o último animal que não havia se refugiado para o inverno, e ela deveria estocar a comida. 

   Para ela, para a mãe e para o irmão. E então eles sobreviveriam. Já sobreviveram uma vez.

   Era uma época rigorosa. Principalmente nas colinas de Delos, onde mais do que apenas neve espreitava do solo. 

   O inverno era agouro da morte, afinal. 

   Foi com esse pensamento que ela soltou a flecha. Era inverno, e a corça deveria morrer. 

   Seu coração se apertou, latejante de dor com o gemido do filhote. Odiava fazer o que tinha que fazer. Odiava pôr fim nas vidas belas e selvagens que encontrava, por mais gritante que fosse a necessidade. 

   Era preciso cobrir o coração com gelo. O inverno transformava a todos em percursores do frio.

   Foi com isso que ela alimentou a coragem necessária para estripar a corça. 

   E apenas quando se certificou de que as botas estavam limpas e as mãos lavadas do sangue, ela se arrastou até o chalé da mãe. Não queria que ela ficasse doente depois do esforço para limpar a sujeira que faria. 

   Sua mãe estava por um fio também, ela sabia. Os espíritos das keres apenas esperavam pelo solstício para reclamar sua vida.  

   Ainda assim, ela enterrou a carcaça da corça na neve ao lado do chalé para que nenhum leão da montanha o farejasse. Cortou ainda mais lenha do que já o fizera de manhã e limpara a neve das janelas, para que a mãe pudesse ver a neve caindo, como gostava de fazer. Acendeu o lampião ao lado da porta para que o irmão visse da cidade que ela estava em casa, e a mãe estava bem, e chacoalhou as vestes do lado de fora para não trazer sujeira para dentro.  

   A casa estava mergulhada pela escuridão. Ela não teve escolha a não ser titubear pelo chalé inteiro até que encontrasse a lacuna na parede onde a única vela costumava ficar acesa. Tropeçou em panelas e bancos e cepos até cair em cima da cama, se jogando sobre um cobertor já ensopado pela neve derretida. 

   Não, não era neve. As janelas estavam fechadas, a porta aberta apenas para que ela entrasse. 

   Ela procurou pelas pedrinhas que usava para acender o fogo, tremendo tanto que as deixou cair. No instante em que se curvou para procurá-las, foi que ela viu. 

   O rosto da mãe. Quebrado. Estraçalhado. Um dos olhos saltado para fora enquanto metade da bochecha esquerda fora completamente rasgada. Um dos braços torcia-se de forma estranha, a clavícula quebrada até onde o pescoço jorrava sangue. O estômago parecia mastigado, completamente aberto, órgãos faltando ou espalhados pela cama. Uma das pernas estava desaparecida. 

   E apenas quando ela voltou os olhos para os olhos da mãe, para os olhos da mulher que a sustentara e amara durante toda a sua vida, foi que Ártemis gritou. 

   

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