Capítulo V

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Tisha passou o pincel para a outra mão e flexionou os dedos que o tinham segurado até aquele momento. Seus ombros caíram, quando ela examinou a certa distância o quadro ainda por terminar. Tinha a impressão de que tudo o que estava fazendo naquele dia, simplesmente não estava dando certo, não estava saindo como queria.
— Problemas? — perguntou Blanche, cuja atenção fora despertada por um profundo suspiro de Tisha.
— Problemas! — concordou Tisha, desanimada. — Principalmente falta de talento.
Blanche colocou o pincel que estava usando sobre a beirada do cavalete e, limpando as mãos, foi até ao outro lado do ateliê, onde sua sobrinha pintava. Pegou um cigarro, acendeu-o e depois pôs a mão sobre o seu ombro.
— Qual é o carro? — perguntou Blanche.
— Este buquê de flores está todo errado. Parece que as violetas estão todas colocadas numa linha reta. E, antes, eu fiz exatamente mesma coisa com os narcisos silvestres. — Tisha ergueu os ombros num gesto que expressava o seu desânimo. — Eu simplesmente sou incapaz de fazer qualquer coisa certa hoje. Sei muito bem onde está o erro, mas não sou capaz de corrigir, de consertar essas coisas.
— Não adianta descobrir apenas quais são os erros que a gente comete, Tisha. Instintivamente, voltamos a cometê-los. Você precisa descobrir como são as coisas certas; desta maneira você poderá repeti-las, cada vez com mais segurança.
— Blanche, você é um doce! — Tisha perdeu seu ar sombrio. — Como é que você consegue descobrir todos esses conceitos maravilhosos?
— Um pouco de bom senso e muita experiência — responde Blanche, sorrindo. — E a minha experiência também está me dizendo que você está tensa como as cordas de um violino. Em muitos casos, a tensão serve para estimular a criatividade, mas em você me parece que está conseguindo apenas causar uma grande frustração.
— E qual é a sua sugestão para resolver isto?
— Vamos suspender o trabalho por hoje! A luz também já não serve mais.
Tisha olhou em direção às janelas. Viu que, lá fora, nuvens escuras estavam começando a obscurecer o sol. Realmente, Blanche tinha razão: a luz deixara de ser ideal para a pintura. Sua tia voltara ao cavalete e estava ocupada limpando os pincéis, como fazia regularmente ao encerrar um dia de trabalho.
Um suspiro escapou dos lábios de Tisha, quando ela começou a limpar o material. Todos os seus esforços tinham sido em vão. Ela ainda não conseguira fazer qualquer coisa que pudesse ser vendida. E tudo só porque aquele rosto pairava constantemente diante dos seus olhos, o rosto de Roarke. Teria sido tão mais fácil, se ela não tivesse saído com ele na noite anterior. Teria sido melhor a sensação de covardia por recusar o seu desafio, do que a descoberta de que ele possuía a habilidade de despertar a sua sensualidade.
— Tisha, Tisha, você está me ouvindo? De repente, ela percebeu que Blanche estava falando com ela:
— Sinto muito. Eu estava com a cabeça muito longe daqui. O que foi que você disse?
— Perguntei se você já foi alguma vez até a Cratera dos Diamantes? — repetiu Blanche.
— Não, nunca deu certo!
— Pensei que nós poderíamos fazer um passeio até lá, hoje à tarde.
— Pra fazer o quê? Vamos procurar diamantes? — Tisha riu.
— Poderíamos fazer isto também — concordou Blanche com um sorriso complacente. — Mas eu estava pensando mais na possibilidade de fazermos alguns esboços de pessoas.
— Eu concordo com qualquer sugestão. — E, em pensamentos, Tisha acrescentou: “Desde que me ajude a deixar de pensar em Roarke”.
— Não fique tão deprimida, meu bem. Todos nós temos dias em que as coisas não funcionam como deviam funcionar — disse sua tia. Seu tom de voz consolador tinha sido provocado pelos elementos de desespero que ela percebera em Tisha.
E Tisha não podia lhe explicar o que estava acontecendo. Blanche gostava muito de Roarke e não iria compreender a aversão que ela sentia em relação àquele homem. Por outro lado, Tisha nem sequer podia expressar sua gratidão pela maneira como sua tia tinha evitado quaisquer perguntas a respeito dos acontecimentos da noite anterior.
— Se eu fosse você, não vestiria uma roupa boa — disse Blanche, quando as duas saíram do ateliê, após deixarem tudo em ordem para o dia seguinte. — É possível que você decida tentar a sua sorte garimpando um pouco.
Algum tempo mais tarde, o carro rodava por uma estrada de cascalho ladeada por uma floresta de pinheiros. O silêncio que cercava as duas mulheres era tão profundo, que Tisha chegava quase a imaginar que elas eram as únicas pessoas em toda aquela região. Essa imagem só se dispersou quando chegaram ao estacionamento.
Após pagarem uma taxa simbólica para entrar no parque, caminharam a pé por um caminho que as levou à área que procuravam. Ao contrário dos demais visitantes que carregavam pequenas pás, picaretas e baldes, Tisha e Blanche se equiparam com blocos de desenho e lápis. Espalhados pela área que contornava uma pequena colina havia pessoas, sozinhas ou em grupos, cavoucando a terra escura em busca de diamantes.
Há milhões de anos atrás tinham ocorrido erupções vulcânicas nas proximidades de uma área coberta de água. O resfriamento repentino das pedras liquefeitas pela água deu origem a uma pressão tremenda, capaz de transformar partículas de carbono em diamantes e cristais preciosos.
Este terreno vulcânico, o único berço dos diamantes encontrados no seu estado natural em todo o continente norte-americano, estava ali aos pés de Tisha. Era uma sensação estranha; ao mesmo tempo excitante e amedrontadora. Quando os diamantes tinham sido descobertos em princípios do século, o entusiasmo espalhou-se pela população e muita gente temeu que voltasse a acontecer uma coisa semelhante à corrida do ouro na Califórnia. Mas nada disso aconteceu. Todas as tentativas de extrair os diamantes de maneira comercialmente interessante tinham sido frustradas; houve muitos casos de incêndios misteriosos e até mesmo de assassinatos e finalmente o governo de Arkansas resolveu comprar a Cratera dos Diamantes e transformou toda aquela área num parque.
Blanche já tinha se instalado no chão, recostada num tronco, com o bloco de desenho apoiado sobre os seus joelhos. Mas Tisha estava fascinada demais pela atmosfera do lugar e preferiu passear um poupo, tomando um caminho que a levou até onde um homem de meia idade de cabelos grisalhos estava trabalhando metido num buraco de pouco mais de um metro de profundidade. Ele estava examinando cuidadosamente a terra que removia daquele buraco, antes de jogá-la num monte que se formava ao seu lado.
— Está tendo sorte? — perguntou-lhe Tisha.
— Por enquanto ainda não! — respondeu ele, soltando a pá no chão e tirando do bolso um lenço com o qual enxugou o suor da testa.
— É lógico que seria bem mais fácil, se eu soubesse que cara tem o que estou procurando!
— Acho que também teria esse problema, se estivesse aí no seu lugar — disse Tisha, rindo.
— Dizem que quando achamos um diamante, ficamos em dúvida se é realmente o que procuramos. — Ele aproveitou a ocasião para descansar um pouco. — O difícil é não esquecer que nem todos os diamantes brutos são brancos. Eles podem aparecer em todas as cores: amarelo, castanho, rosa. Dizem que existem até mesmo diamantes negros. Todo o mundo acha que é besteira gastar o tempo cavoucando a terra, mas quando se fica sabendo que os diamantes pertencem a quem os encontra dá uma comichão irresistível na gente.
— Eu acho que tudo depende do fato de uma pessoa ter sorte ou não — disse Tisha.
— Quando se pensa que todas as pessoas que cavoucam por aqui não têm muita experiência nestas coisas, a sorte realmente é muito importante — concordou ele. — Mas, por outro lado, sempre tem alguém que acha alguma coisa.
— Espero que o felizardo de hoje seja o senhor.
— O mais divertido é ficar procurando — respondeu ele, levantando os ombros e pegando novamente a sua pá.
Tisha desejou-lhe outra vez muita sorte e continuou o passeio, sorrindo quando percebeu que também estava olhando atentamente para o chão. — A febre é realmente contagiosa! — pensou ela. Contagiosa e forte, como a lembrança daquele rosto masculino, sorridente e transmitindo uma alegria de viver tão intensa. Como aquele rosto queimado que ainda estava vivo na sua memória. Sentou-se à sombra e abriu seu bloco de desenhos.
Na primeira tentativa, Tisha não conseguiu captar exatamente todas as suas impressões, de maneira que virou a página. Desta vez, ela não hesitou, e o lápis começou a correr com muita agilidade sobre a folha de papel. Parecia que uma dose de estimulante tinha sido injetada no seu corpo, aumentando o seu entusiasmo pelo melhor retrato que já fizera em toda a sua vida.
— Mas está excelente, Tisha! — exclamou Blanche. Ela tinha se concentrado tanto no desenho, que nem percebera que sua tia se aproximara. — Você conseguiu captar muito bem todas as características de Roarke.
O lápis parou no meio de um risco. Realmente, o rosto que a fitava do seu próprio bloco era o de Roarke. O desenho era perfeito, transparecendo aquele sorriso irônico e a mesma expressão calma e arrogante no olhar. Tisha sentiu seu coração palpitar, quando percebeu o que tinha desenhado.
Blanche não prestou atenção no silêncio de sua sobrinha e começou a enumerar os bons detalhes do desenho: — Este sorriso que você colocou no rosto dele é uma ótima indicação do extraordinário senso de humor que ele tem. E você conseguiu captar muito bem a determinação e a força do queixo. Mas o que mais me impressiona é a maneira como conseguiu transmitir a confiança que ele sente em si mesmo, e que é um elemento básico da sua personalidade.
— Ele é um arrogante! — exclamou Tisha, fechando o bloco e levantando-se.
— Ele está conseguindo fazer o seu coração bater mais depressa, não é?
— Não! — negou ela, rapidamente. Mas quando percebeu que sua tia estava se referindo ao seu temperamento e não aos seus desejos mais íntimos, enrubesceu de vergonha. — Quero dizer, sim. O meu sangue começa a ferver todas as vezes que vejo este homem na minha frente.
— Quando duas pessoas se encontram a reação química entre elas pode ser de dois tipos: compatível ou combustível — declarou Blanche com toda a naturalidade do mundo. — Entre vocês não resta a menor dúvida de que a reação é do segundo tipo.
Tisha levantou os ombros num suspiro profundo: — Combustível, sem a menor dúvida. — Esta era uma palavra que descrevia muito bem a situação toda, pensou ela, concordando com a tia.
— Não fique triste, Tisha — disse Blanche. — Afinal, você não tem culpa dessa incompatibilidade.
— Roarke é tudo aquilo que eu detesto num homem… ele é arrogante, briguento, dominador. No entanto… — Tisha engoliu em seco. — No entanto, quando estou na companhia dele, ele faz com que me sinta mais mulher, como nunca me senti em toda a minha vida.
Houve um momento de silêncio, enquanto Blanche observou o rosto ruborizado e envergonhado de sua sobrinha: — Você está querendo dizer que sente uma atração sexual por ele?
— E isto não faz o mínimo sentido, eu sei disto. — Tisha, pouco à vontade, mudou de posição; suas mãos seguraram o material de desenho com mais força do que o necessário. — Eu não gosto dele; não tenho um pingo de respeito por ele. Para este sujeito, as mulheres não passam de um passatempo bastante divertido. Esse tipo não pensa em nós como sendo seres humanos; para eles, nós não passamos de brinquedos que podem ser colocados de lado, no momento em que perdem o interesse.
— Você está fazendo um julgamento muito severo — respondeu Blanche, numa tentativa de diminuir a veemência dos sentimentos que ferviam dentro da jovem.
— Severo demais? — replicou Tisha, com certa amargura. — Ele não passa de um desses homens interesseiros, que usam todo o seu charme para a gente sair da defensiva e depois da conquista esmagam.
— Você mal teve tempo para conhecê-lo melhor, Tisha. Não acha que, eventualmente, pode estar se precipitando demais em condená-lo? — Quando percebeu que Tisha ia negar isto, Blanche continuou com muita calma, mas com firmeza na voz. — Eu não estou dizendo que você esteja completamente errada na opinião que formou dele. Afinal, o primeiro encontro entre vocês não foi nas melhores circunstâncias possíveis, e isto, sem dúvida alguma, acabou afetando a sua atitude em relação a ele.
— Acho que ele me deixaria com os cabelos em pé, não importa em que situação.
— Isto pode ser verdade! — ponderou Blanche, examinando sua sobrinha com um olhar especulativo. — Mas parece-me que você está mais preocupada com o fato de ele ser capaz de excitá-la fisicamente, não é?
Tisha apertou firmemente os lábios e balançou a cabeça numa resposta afirmativa. Tudo aquilo fazia com que ela sentisse como se estivesse de alguma forma, traindo a si mesma.
— Gostaria de saber o que dizer a você numa situação dessas — disse Blanche, abraçando-a como consolação. — Acho que, no fundo, isso tudo é uma coisa que você mesma vai ter de digerir sozinha, minha querida. Vamos para casa agora? Proponho pararmos em algum lugar para comer qualquer coisa, assim não teremos de ir para a cozinha. Conheço um pequeno restaurante em nosso caminho, onde eles servem um peixe delicioso.
— Parece ser uma ótima idéia! — concordou Tisha, fazendo o possível para adotar o mesmo tom de despreocupação de sua tia. Juntas, voltaram para o estacionamento.
Quando saíram do restaurante, a chuva estava caindo com certa intensidade. Blanche aceitou muito grata, quando Tisha se ofereceu para guiar o carro até a casa, nas montanhas. Os rápidos movimentos do limpador de pára-brisa pouco conseguiam fazer contra a torrente de água que os céus despejavam naquele dia. Tisha só ficou tranquila na direção, quando chegaram ao caminho que levava à casa.
— Você acha que temos a coragem de dar uma paradinha na caixa de correspondência? — perguntou Blanche.
— Não vejo por que não haveríamos de parar — respondeu Tisha.
— Mesmo com essa chuva a estrada está bem firme. Posso parar junto à caixa e você só terá de abaixar o vidro de sua janela para pegar tudo o que o carteiro deixou.
— É que estou esperando algumas cartas muito importantes — murmurou sua tia.
— Não fique preocupada, Blanche. Não há problema algum em pararmos ali durante um instante.
Quando Blanche desceu o vidro, o vento e a água invadiram o interior do automóvel. Rapidamente estendeu o braço e pegou os envelopes que estavam dentro da caixa e depois, bem depressa, levantou novamente o vidro.
— Quanta água! — exclamou ela, rindo, enquanto tentava enxugar o braço com uma flanela que encontrou no porta-luvas. — Vamos depressa para casa, onde tudo está seco e quentinho.
Trovões ecoavam ameaçadoramente no céu, quando Tisha manobrou o carro para dentro da garagem, feliz por terem esquecido de fechar a porta.
— Vou ter de trocar de blusa; ela está totalmente encharcada — declarou Blanche, assim que elas entraram na cozinha, passando por uma porta que ligava a garagem ao restante da casa. — Você não quer fazer um pouco de café para nós, Tisha? — Ela despiu a roupa molhada que estava colada à pele e riu: — É inacreditável. Fiquei tão molhada só porque abri o vidro do carro durante alguns segundos.
Tisha já havia colocado uma panela com água no fogão. Suas costas estavam doloridas por causa da tensão de dirigir em meio àquela tempestade.
— Agora corra e vá trocar de roupa também — disse-lhe sua tia.
— Mas vá depressa, senão eu tomo todo o café sozinha.
Quinze minutos mais tarde, Tisha estava confortavelmente instalada numa das poltronas da sala, uma xícara de café fresco na mesinha ao seu lado, ouvindo o barulho da chuva martelando nas vidraças iluminadas, de quando em quando, pela luz dos relâmpagos. Blanche tinha trocado de roupas e estava sentada no sofá, examinando a correspondência.
— Oh, não! — murmurou Blanche de repente.
Tisha levantou o olhar e viu que sua tia fitava um pacote mais ou menos grande com uma expressão atônita estampada no rosto!
— O que foi?
— O carteiro é um idiota; ele colocou este pacote na caixa errada — respondeu Blanche, contrariada. — É para Roarke, mas foi colocado na minha caixa.
— Você pode lhe entregar o pacote na próxima vez que ele passar por aqui, não pode?
— Realmente, esta é uma solução — admitiu ela. — O problema é que ontem à noite, quando ele veio lhe buscar para jantar, nós ficamos conversando, enquanto você acabava de se preparar, e ele disse-me que tinha uns projetos para entregar no máximo na próxima segunda-feira, mas não podia terminá-los enquanto não recebesse umas informações a respeito de uns novos materiais que ele pretende utilizar. E que estava esperando essas informações para hoje pelo correio. E agora, este carteiro colocou o pacote na nossa caixa.
— Ora, Blanche, a culpa não é sua — disse Tisha, que não conseguia reunir simpatia suficiente para sentir o problema de Roarke.
— Sei que a culpa não é minha, mas também sei que ele precisa deste material para poder terminar o projeto. Será que você se importaria muito em ir… Não, não, esqueça. — Blanche sacudiu a cabeça sem chegar a terminar a pergunta que tinha começado a formular. — Eu mesma vou levar isto até a casa dele.
— Isto é uma doideira! Você não tem obrigação alguma em levar este pacote até à casa dele no meio desta tempestade!
— Tisha, eu sei que ele está precisando destas informações. E eu sei como é quando a gente tenta terminar uma coisa e não tem as ferramentas ou os materiais necessários — insistiu a tia dela levantando-se do sofá.
— Você está realmente pensando em levar isto até à casa dele? — Tisha sacudiu a cabeça, incrédula. — Apesar de você morrer de medo quando tem de dirigir à noite, ainda mais numa noite chuvosa, você está decidida a ir?
— Eu sei o que você sente em relação a ele, Tisha — disse Blanche, enquanto pegava a capa de chuva e um guarda-chuva —, mas ele é um ótimo vizinho e um bom amigo para mim. Tenho a certeza de que ele faria a mesma coisa para mim, independente do que você pensa a respeito dele.
Ela percebeu que não seria capaz de persuadir sua tia a mudar de idéia. No entanto, sua consciência não permitia que ela deixasse Blanche dirigir o carro num tempo como aquele. Por mais independente e auto-suficiente que sua tia fosse, existiam algumas coisas capazes de deixá-la com os nervos totalmente em frangalhos. E entre estas coisas, dirigir à noite e dirigir na chuva ocupavam posições de destaque.
— Já que não consigo fazer você desistir dessa sua idéia maluca — disse ela, mal-humorada, levantando-se com certa relutância —, eu mesma vou levar isto até lá no seu lugar, Blanche.
— Mas isto não é necessário.
— Acho que é necessário sim — respondeu Tisha. — Pode guardar a sua capa outra vez e me empreste esse guarda-chuva.
— Eu vou junto com você.
— Não existe necessidade alguma para nós duas enfrentarmos esta tempestade. — Tisha colocou a capa. — Você fica aqui em casa, bem boazinha tomando café. Mas guarde uma xícara para mim.
— Você tem certeza de que não se importa mesmo? — perguntou-lhe Blanche.
— Não me importo — respondeu Tisha, um pouco exasperada.
— Onde está o tal precioso pacote com todas as suas valiosas informações?
— Aqui. — Blanche colocou o pacote nas mãos da sobrinha. — Ah… Tisha.
— Sim? — Tisha, que já estava indo para a cozinha, parou antes de alcançar a porta de conexão com a garagem.
— A casa do Roarke é um espetáculo digno de qualquer revista especializada. Acho que vale a pena ficar lá durante alguns minutos, pelo menos o tempo suficiente para ver tudo. — Blanche não deu tempo para que Tisha pudesse responder alguma coisa. — E dirija com muito cuidado.
Tisha pensou que a casa devia realmente ser fora de série, senão Blanche — que não era facilmente impressionável por estas coisas — não teria dito isto. Mas no seu atual estado de espírito, ela não estava interessada em ficar a sós com Roarke. Sua atitude em relação a ele era ambivalente demais. Enquanto ela não fosse capaz de controlar ou de compreender os seus sentimentos, quanto menos o visse melhor seria.
A violenta tempestade a forçou a manter o carro numa velocidade mínima durante o percurso de quinhentos metros até à casa de Roarke. Ela quase passou, sem perceber, pela entrada ladeada por arbustos; foi apenas no último instante que reconheceu a saída da estrada na pequena área iluminada pelos seus faróis.
Tisha não tinha percebido a princípio que a casa se encontrava tão longe assim da estrada. Ela estacionou o carro na pequena entrada e desligou o motor. Foi necessária certa ginástica para poder abrir o guarda-chuva ao mesmo tempo em que saía do carro; depois, correu entre poças de água até um abrigo coberto. Ela tinha se lembrado de colocar o pacote dentro do casaco, numa tentativa de impedir que ficasse molhado.
Com impaciência, apertou a campainha da porta. Devido aos trovões incessantes, era impossível saber se alguma coisa tinha ou não soado lá dentro. Alguns segundos mais tarde, a porta se abriu e Roarke surgiu.
— Tisha! — Ele ficou obviamente surpreso com a sua presença. — Pensei que ninguém se aventurasse a sair com um tempo destes.
Ela não disse nada, enquanto procurava retirar o pacote debaixo do casaco com a mão livre.
— Confesso que você conseguiu me apanhar de surpresa. Nunca pensei que você iria sentir tanto a minha falta; pelo menos, não a ponto de vir até aqui numa noite como esta.
— Eu não vim aqui para ver você — replicou Tisha, irritada. Finalmente, conseguira desvencilhar o pacote debaixo do casaco impermeável e estendeu-o para ele. — Por engano o carteiro colocou isto na caixa de correspondência de Blanche. Ela achou que você iria precisar deste material e, para impedir que saísse na chuva, eu mesma vim.
A porta atrás dela já tinha sido fechada. Tisha teria preferido entregar-lhe o pacote e sair correndo dali. Roarke pegou o pacote, examinou-o brevemente e jogou-o sobre um aparador de madeira.
— Fico muito grato por você se ter dado ao trabalho de me trazer isto; eu realmente estava esperando que este material chegasse hoje pelo correio. Eu comentei isto com Blanche e ela deve ter se lembrado — disse ele com um sorriso e acrescentou: — Agora, me dê o seu casaco.
— Não vou me demorar. — Ela recuou alguns passos quando ele se aproximou para ajudá-la a despir o casaco molhado. — Eu vim até aqui apenas para lhe entregar o pacote. Vou voltar imediatamente para casa.
— Venha até a lareira para secar um pouco a sua roupa. Eu não acho que sua tia irá ficar muito preocupada se você me fizer companhia durante alguns minutos.
— Não, muito obrigada — insistiu ela, com frieza na voz. — Além do mais, de nada adiantaria secar as roupas agora; eu vou me molhar outra vez quando for até o carro.
— Acabei de fazer um bule inteiro de chocolate. Você tem certeza que não quer mesmo tomar um pouco? — ofereceu ele.
— Não, eu não quero.
— Mas eu insisto. — Mais uma vez a mão dele se fechou sobre o braço dela, antes de ela poder evitá-lo. — Você não está se mostrando uma boa vizinha, recusando a minha hospitalidade, que é a única coisa que posso lhe oferecer em troca desse trabalho.
— Mas eu, realmente… — Tisha desistiu de continuar com o seu protesto quando percebeu que não iria ganhar a discussão mesmo. — Está bem. Já que é inevitável, aceito uma xícara de chocolate. Mas depois eu vou embora.
— Só uma xícara — concordou ele, muito no seu papel de anfitrião perfeito. Com um gesto indicou uma porta à direita. — O living é ali. Fiz fogo na lareira, o que é bom; assim você poderá secar um pouco enquanto toma um chocolate bem quente. Você prefere com ou sem creme?
— Com creme, por favor — respondeu ela, afastando-se dele assim que sentiu a pressão de sua mão diminuindo no braço.
— Vá para o living. Eu volto já com o seu chocolate.
Um pouco hesitante, ela caminhou lentamente para a porta que lhe tinha indicado. Agora que a sua presença não estava ali para perturbá-la, Tisha aproveitou para examinar melhor o lugar onde estava.
Blanche lhe tinha dito que a casa de Roarke era um verdadeiro espetáculo, mas Tisha tinha esperado encontrar um lugar muito ostentativo e ultraelegante. De qualquer forma, ela nunca tinha pensado na possibilidade de encontrar uma sala tão confortável e convidativa.
— Tire o casaco e sente-se.
Assustada, ela se virou e viu que Roarke estava de pé, no topo da escada.
— Se você achar que o ambiente é escuro demais, do lado da lareira existe um interruptor — disse ele, fazendo um gesto naquela direção com a cabeça, já que ambas as mãos seguravam uma bandeja com duas xícaras de chocolate.
— É uma sala muito bonita — comentou ela, acendendo a luz.
— Obrigado — replicou ele, aceitando o elogio dela com uma ligeira inclinação de cabeça, mas Tisha não conseguiu encontrar vestígio algum de arrogância no seu gesto. — Se você preferir, pode virar a poltrona de madeira a ficar de frente para o fogo.
— Está bem assim — assegurou-lhe, um tanto nervosa.
— Eu penduro o seu casaco lá no saguão de entrada — ofereceu Roarke, colocando uma xícara de chocolate fumegante na mesa ao lado dela.
Relutantemente, Tisha lhe entregou o casaco. Ele estava úmido e, apesar de não estar molhado a ponto de soltar pingos de água, ela sabia que a coisa mais lógica a ser feita era pendurá-lo em algum lugar onde pudesse secar sem molhar alguma outra coisa. Com os olhos acompanhou Roarke, que subiu os degraus em direção à entrada. Após alguns segundos, ele voltou.
O silêncio foi ficando cada vez maior. Tisha foi ficando mais nervosa; o crepitar do fogo parecia fazer com que a tensão ficasse maior ainda. Alguém tinha de dizer alguma coisa, aquele silêncio não podia continuar. Ela precisava dizer alguma coisa, não importava sobre que assunto.
— Blanche me disse que a sua casa era muito bonita, mas nunca esperei encontrar uma coisa destas.
— O que foi que você imaginou? — perguntou Roarke secamente. Tisha lançou um rápido olhar em sua direção, tentando decifrar a expressão velada dos seus olhos castanhos. Ele parecia estar bastante relaxado, no entanto — ela pôde sentir isto — havia certa tensão nele também.
— Pensei que a sua casa fosse bem mais… bem mais ostentativa — respondeu ela, tentando adotar uma atitude de profunda indiferença.
— Como uma vitrine? — perguntou ele, erguendo as sobrancelhas.
— Não sei. Acho que não cheguei a me preocupar muito com este assunto — respondeu Tisha, levantando os ombros e sentindo uma onda de raiva crescendo dentro dela, porque ele conseguira colocá-la outra vez numa atitude defensiva. — Se tivesse pensado mais, eu provavelmente teria imaginado um sofá que se transforma numa cama quando se aperta um determinado botão, ao mesmo tempo em que as luzes diminuem de intensidade e os alto-falantes começam a inundar tudo com uma música doce e suave, tocada por milhares de violinos.
— Ou seja, um cenário perfeito para uma cena de sedução, não é?
— É, alguma coisa neste gênero — concordou ela. — Mas isto tudo é muito mais sutil, apesar de ter a certeza de que serve exatamente para a mesma finalidade.
— Que coisa estranha — murmurou Roarke. — E eu sempre imaginei que isto fosse o meu lar.
Suas palavras foram ditas num tom de voz que fez Tisha sentir o coração pular e seus dedos apertaram com mais força a asa da xícara. Ela percebeu a reprimenda nas palavras dele e sabia que tinha merecido ser chamada à atenção depois de insultá-lo daquele jeito. Sentiu o chocolate quente lhe queimando a garganta, quando tentou beber tudo de uma só vez, para poder ir embora mais depressa. Roarke levantou-se do sofá com um movimento brusco.
— Venha — ordenou ele. — Quero lhe mostrar o restante da minha casa.
— Numa outra ocasião — recusou ela bem depressa, colocando sua xícara sobre a mesa e erguendo-se também.
— Não. Hoje mesmo — disse Roarke com firmeza, seu corpo alto bloqueando a passagem para a escada. Tisha não teve dúvidas de que ele seria capaz de impedi-la, se fosse necessário. — Quero que você tenha uma impressão completa da casa.
Ela respirou fundo. — Muito bem — concordou Tisha, irritada.
— Você vai à frente. Sua mão estendida indicava que ela deveria precedê-lo em direção ao hall mal iluminado, que ficava ao lado do living.
Tisha obedeceu, mas seus ombros estavam tensos e rígidos quando seguiu na direção indicada. Logo no começo do corredor havia duas portas, uma diante da outra. Roarke abriu primeiro a que se encontrava do seu lado direito e acendeu a luz, que revelou um banheiro totalmente decorado nas cores azul e verde. Em seguida, foi até a outra porta e a abriu.
— A idéia original era fazer um quarto para hóspedes aqui — explicou ele, acendendo a luz e esperando que Tisha entrasse —, mas eu uso este quarto como escritório e lugar de trabalho.
Roarke, sem esperar que Tisha tivesse tempo para fazer algum comentário, a levou até a outra porta no fundo do corredor. Desta vez, ele não ofereceu explicação alguma quando abriu a porta e acendeu a luz. Tisha entrou pela porta aberta e logo compreendeu por que ele tinha permanecido em silêncio. Este era o quarto do dono da casa… o quarto em que Roarke dormia.
Tisha sentiu que lhe faltava o ar e seus olhos permaneceram fixos na enorme e convidativa superfície da cama; ela nem pôde registrar direito as demais peças que compunham a decoração do quarto. A presença física de Roarke, parado ali ao lado dela, fez com que ela sentisse um arrepio percorrendo-lhe a espinha.
— É muito bonito — disse ela de maneira abruta, girando nos calcanhares, numa tentativa de escapar daquele lugar.
Ele só foi alcançá-la quando Tisha já se encontrava no living que lhe oferecia, pelo menos, certa segurança. Lançou um olhar rápido em direção a Roarke e percebeu que havia uma expressão de intenso divertimento nos olhos dele. Ela o odiou por causa disto.
— Eu acho melhor voltar para casa agora — declarou ela.
— Você ainda não viu a cozinha — lembrou ele, reprimindo um sorriso. — As mulheres sempre querem saber como são as cozinhas, não é mesmo?
— Mostre-me esta cozinha, então — replicou ela de maneira incisiva.
Depois de conhecer a cozinha, Tisha disse:
— Como já disse antes, você tem uma casa muito bonita. — A hipocrisia patente em sua voz era deliberada; desta maneira ela tinha a intenção de expressar toda a indiferença que gostaria de sentir em relação a este homem.
— Fico tão contente por você ter gostado — replicou Roarke no mesmo tom de falso entusiasmo. Voltando ao saguão de entrada, ela apanhou o casaco do cabide. — Por favor, agradeça Blanche por mim. Vou precisar muito deste material durante o fim de semana.
— Prometo transmitir o seu recado — disse Tisha enquanto vestia o casaco. — E muito obrigada por ter me mostrado a casa toda.
Ele abriu a porta como se estivesse ansioso por se ver livre dela. — O prazer foi todo meu — murmurou ele.
Um relâmpago iluminou a noite quando Tisha saía rapidamente da porta; ela estava ainda mais ansiosa por ir embora do que ele por ficar sozinho.

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