Capítulo XXI

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Lágrimas de nanquim escorreram pelo rosto paralisado de Selene.

Telbeth cambaleou para trás, o punhal em sua mão escorrendo o sumo da carne.

Os guardas se voltaram para o Rei, afogando-se no próprio sangue.

Os prisioneiros gritavam e choravam. Mas tudo estava silencioso. Apenas o coração da princesa retumbava. Um, dois. Um, dois.

Ela despertou.

Suas mãos agarraram o punhal limpo do chão e ela o empunhou.

— Para trás.

O choque no rosto de Telbeth a fez se sentir um monstro, mas ela não recuou.

— Levem-no daqui. Deixem-me a sós com meu pai.

— Vossa Alteza... — começou um dos guardas, hesitante. Apesar dos gritos agonizantes dos prisioneiros, e de Caden, tudo estava quieto. Ela iria conseguir.

— É uma ordem.

Todos deram uma última olhada para o Rei. Talvez ainda não estivesse morto, mas eles precisavam acreditar que sim. Selene caiu de joelhos assim que prenderam os braços do irmão, que nem mesmo ofereceu resistência. Os guardas saíram, devagar e silenciosos.

Ao fecharem a porta, ela se pôs ao trabalho.

Ao redor de uma poça de sangue estavam as chaves, presas ao cinto do rei. Selene as tirou dali e, quando ia se levantar, sentiu um aperto úmido no tornozelo.

— Você não pode...— começou, a voz áspera.

— Eu preciso.

— Se me deixar aqui vai... — tossiu, respingando gotas de sangue no chão —... pagar.

Ela se desvencilhou e olhou para ele de cima. Sua boca vermelha de sangue e saliva balbuciava súplicas e pragas.

— Caden! — O rapaz chorava na cela. Ela tentou focar nas algemas e no trabalho enervante de achar as chaves em vez de olhá-lo, mas era difícil. Quando finalmente conseguiu, seus dedos congelaram: queimaduras gêmeas marcavam os pulsos dele como braceletes. Ele apoiou as mãos no chão e uma fina camada de gelo se formou ao redor delas.

— Princesa! — Ela desviou o olhar. — Aqui!

Com mãos trêmulas e uma respiração instável, não foi uma tarefa fácil libertar os outros prisioneiros. Sangue seco incomodava seu nariz e orelhas e o zumbido constante atormentava sua cabeça. Quando todos foram soltos, porém, a pressão diminuiu consideravelmente.

Um pequeno círculo se formou ao redor de Caden. Feéricos com diferentes graças uniram seus poderes para ajudá-lo. Um filete de água escorria de uma folha mágica que estava sendo usada como recipiente direto para a boca do rapaz.

— Precisamos sair daqui — disse um baixo ancião chifrudo — Princesa...? — Seu olhar pousou na porta de ferro, e ela entendeu.

— C-Claro. — Tentou não olhar para o homem arquejante estirado no chão e, com um empurrão, abriu passagem. — Podem ir.

Os ex-prisioneiros hesitaram antes de saírem dali. A desconfiança pairava no ar, mas a tosse sufocante de Caden os incentivaram a continuar. Selene ficou.

Pai? — Era tão difícil encará-lo.

Sel...

Abandoná-lo ali seria mais fácil. Não ter que olhá-lo de cima, derrotado. Mas ela precisava. Fora a única que restara.

— Eu sinto muito. — Era verdade. A morte leva muitas coisas embora, inclusive a raiva. Lágrimas escorreram pelo seu pescoço.

Me tire... daqui.

Não posso. Você vai executar Telbeth. Executar todos nós. Vai se vingar.

Não...

Vai, sim! — Soluços interromperam sua respiração. Não conseguia parar de chorar. E não conseguiria se ele continuasse implorando, suplicando. — Você fez isso sua vida toda! E vai fazer de novo! Com Telbeth e co-comigo e... e com eles. Eu perdoo você, mas por favor, não me culpe por isso.

— Nunca... pedi seu p-perdão.

Selene não soube mais o que dizer. Uma falta de ar gorgolejante o acometeu e ele se debateu até ficar inerte. Os olhos abertos, as pupilas dilatadas, lábios e dedos perdendo a cor e ficando azuis. O cheiro enjoativo e rançoso do sangue misturando-se a outros odores nauseantes.

Segundos eternos se passaram e ela continuou ali, em pé, olhando-o.

Caden perdeu a noção de quantas vezes vomitou até não ter mais nada em seu estômago. Sua garganta e tudo que a seguia queimava, ele sentia a febre tomar conta de seu corpo, mas pelo menos não estava mais preso, pelo menos estava resvalado nos degraus úmidos de pedra, tremendo e suando, como um animal abatido. Mesmo assim, conseguiu dar um sorriso, as extremidades de sua boca ardendo por causa das rachaduras feridas.

— Você assou por dentro — disse um dos feéricos, ele não soube dizer quem.

— É.— Sua voz saiu tão rouca e áspera que foi quase inaudível.

— Deem mais leite a ele. — Uma jovem retirou uma flor de copo-de-leite de seus cabelos e cuspiu, logo, um líquido perolado subiu até a borda, mas sem derramar.

— Passo — recusou com uma careta.

— Consegue beber um cálice inteiro de flor de fogo mas recusa isso? — perguntou Indis, as bolhas na pele já cicatrizando.

— Não é mais nojento que um
beijo — argumentou a garota com cabelos de flor. Ele a olhou e piscou, sem reação. Viraram o líquido em sua boca antes que ele pudesse protestar. Apesar da ânsia, a queimação amenizou.

— Onde ela está? — perguntou, franzindo o cenho. Um certo desconforto o atingiu ao pensar nela, a princesa que o salvara.

— Lá embaixo, com o rei — disse o ancião. E depois completou: — Com o pai.

— Por quê?

— Você não viu? O príncipe o atacou.

Ele passara a maior parte do tempo tentando não asfixiar com o fogo que subia e descia por sua garganta, então as únicas coisas de que lembrava eram o desespero e a dor gritante, o resto estava turvo em sua memória. O rei havia sido atacado? Estaria ele morto ou apenas ferido? Selene ficara lá para salvá-lo também?

— Garoto?

— Ela... — Sua voz se esvaiu. Ela o quê? Precisava de ajuda? Era certo que não. Deveriam ir buscá-la? Talvez, sim. Ou talvez ela quisesse ficar sozinha. Ele não sabia.

Não importava, pois Selene agora os olhava da base da escadaria, os braços pendidos ao lado do corpo, o peito afundando a cada respiração lamentosa e o rosto franzido com dor e confusão. Caden não esqueceria a sensação que vê-la assim o causou.

— O rei está morto — anunciou, e as palavras pareceram ecoar, infinitas.

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Olá! O que acharam do capítulo? Eu tentei fazer mais longo dessa vez ;)

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Até a próxima ✌️

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