Não seja ridícula

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 Lucy tinha razão quando disse que só conhecemos o mundo quando descobrimos os livros.

Mal começamos a nossas aulas particulares e aprendi a ler tão rápido quanto era possível. Daphne não gostava de livros, na verdade, não suportava as aulas que não envolvessem música ou trabalhos manuais , mas se dedicava porque sabia que nossos pais não tolerariam nada menos que isso.

Odile voltou para seus assuntos da alta sociedade e novamente eu tinha liberdade que tanto gostava. Não para sair sozinha, nem ousaria tentar, mas a nova casa tinha uma biblioteca gigante onde eu passava boa parte do meu tempo livre. Os livros viraram meus novos melhores amigos, e aparentemente o antigo morador da mansão também compartilhava do mesmo entusiasmo porque tinha os títulos mais variados, incluindo os romances e contos de fadas trouxas. Eu adorava ler que os trouxas encaravam a magia como uma solução para todos os problemas da vida. Animais que falam e fadas madrinhas. Bem que eu gostaria de ter uma também, ou um gênio da lâmpada que me oferecesse algum desejo. Mas era apenas uma criança e ainda nem tinha certeza se era uma bruxa de verdade.

— O que você está lendo?- quis saber Daphne tirando o livro das minhas mãos.

Ela o jogou na lareira quando viu que era um exemplar de A bela adormecida.

— Já te disse que não é para ler essas porcarias, mamãe ficará furiosa se a pegar lendo livros de romance trouxa e você sabe muito bem como ela é quando fica furiosa. Olha Astória, você precisa entender que isso nunca vai acontecer conosco, nós nunca vamos ter um final feliz. Você compreende o que eu digo? 

Ela dizia aquelas palavras olhando bem no fundo dos meus olhos e sacudindo meus ombros com força.
Apesar de termos apenas dois anos de diferença uma da outra, Daphne sempre pareceu muito mais velha do que realmente era. Alta, com as feições duras, sobrancelhas grossas e uma voz impaciente. Tudo nela era rígido demais para uma criança, ela lembrava uma pequena senhora de quarenta anos, do qual a vida se encarregou de levar toda inocência e doçura. A diferença  era que  Daphne tinha apenas dez anos e um espirito intragável, arrogante e controlador. Ela não era uma criança bonita, mas poderia ter sido se alguém tivesse lhe dito alguma vez que era. Tivera o azar de puxar os traços grosseiros dos Greengrass, o cabelo de terra desbotado que usava sempre em uma trança única, puxada para trás. Porém, os olhos, sim, os que me encaravam furiosamente, eram de joias, como os de nossa mãe. Duas esmeraldas que transpareciam todos os seus pensamentos, como um espelho, ou um grande lago de águas esverdeadas.

 
Eu não gostava de encará-la, pois sentia como se minha mente fosse invadida, como se pudesse ser despida pelo seu olhar. Entretanto, apesar da rudeza, Daphne era boa para mim, à sua maneira. Dura e insensível, mas cuidadosa. Ela era capaz de desafiar qualquer um que atravessasse seu caminho, e também o meu. Anos depois fui capaz de invejá-la por sua capacidade de controlar o próprio destino, mas diferente dela, o verde o não me caía bem.

 
Odile possuía o terrível hábito de nos vestir iguais, como se fôssemos gêmeas. O que seria impossível de alguém imaginar, considerando que nunca existiu duas irmãs com aparências tão distintas. Ainda assim eu detestava usar as mesmas roupas que  Daphne, o que ficava bom nela nunca ficava bem em mim, e visse e versa. Odile adorava dar festas e jantares elegantes,  quais combinavam perfeitamente com sua personalidade encantadora e alegre , contrastando com a educação rígida que nos dava. Nós nunca tínhamos permissão de participar desses eventos sociais e, nessas noites, jantávamos cedo e éramos enviadas para cama o quanto antes, até aquela noite. A primeira em que o vi.

 
Eu usava um vestido lilás,   misturando-se musseline e a seda numa dança maravilhosa. Eu girava. Girava. Girava.... Pela primeira vez usava uma cor só minha. Lilás. Depois daquela noite passou a ser minha cor favorita. Daphne apareceu em um vestido verde de veludo coletê, muito mais apropriado à sua consistência alta e magra. Eu odiava veludo, mas usaria se isso fosse o passaporte para aquela noite, fiquei muito satisfeita por não precisar. Estávamos felizes com o nosso primeiro jantar importante, entretanto contidas, não ousaríamos fazer nada que irritasse nossa mãe, temíamos até o som da sua voz, sempre gelada como o inverno.

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