O Silêncio dos Santos: A Insânia e Ruína do Sagrado (Livro II)

Monólogo

*RECOMENDAÇÃO DE MÚSICA DA TRILHA SONORA PARA O CAPÍTULO: To Be - The Irrepressibles

"Deus é misericórdia".

Estava escrito numa das bordas da mesa de jantar.

A cidade velha de Edimburgo caía em chuva gélida, cheirava a antiguidade e sempre achei que Deus se entristeceu pelas minhas escolhas. O pesar em minha respiração transmitia um devido arrependimento.

Eu e mais oito jovens diáconos de diferentes localidades desfrutávamos do banquete após as preces silenciosas e reservadas em nosso cenáculo¹ — como o ambiente fora nomeado —.

Quando ao rir em meio a uma conversa despretensiosa sobre experiências constrangedoras na santa missa, minha cabeça pendeu para frente, e meus olhos distantes e cercados pelas minhas madeixas, fitaram a citação.

De certo modo, confortante.

Parecia um ato rebelde riscar uma madeira tão preciosa de mogno. A igreja mandou construí-la com esmero na Itália e um simples vandalismo foi o que atraiu a minha atenção. Um bem material polido da morada de Deus. Deveríamos zelar pela casa paroquial e suas particularidades.

Entretanto, aquela atitude, a frase, me convocou a reviver os tempos de rebeldia. Os que a adrenalina corria e ardia em meu sangue tomado em maldição. Eu era enérgico nas lembranças. Aparentei ser um adolescente estúpido a recuperar memórias de um tempo que pretendia esquecer.

Entre fugas de uma falecida avó problemática e a imensa vontade de ver uma amizade que se transformou em amor sincero e eterno. Até um determinado ponto, inocente.

E por infelicidade, ainda a amo. Sim, não sinto orgulho em carregar excessos em meu peito. Porém, não é apenas amar. O amor é além de uma pequena palavra.

O pior é que eu a quero. Aliás, queria comigo, ao meu lado. Em meus lábios macios, meu olfato sensível, meu enxergar atento, minha cálida cama e em minhas mãos marcadas em dor.

Na igreja, somente Kansas conheceu com proximidade o meu sentimento secreto e desmedido por Gaya Demdike. Como uma mulher tão fascinante plantou diversas emoções em mim desde a infância e fincou raízes profundas que não consigo cortar?

Como ela resiste?

Todavia, eu não confiava em ninguém fora Deus. Sei que o rumo seguido não me pertencia. Consistia em algo feito no intuito de honrar meus falecidos, afinal, nunca os orgulhei. Sou um fardo que respira.

Era tarde para abandonar tal caminho religioso. Precisei seguir mais adiante. Dar passos dolorosos com destino à santidade. Agarrar a minha cruz.

No entanto, "Deus é misericórdia" e cá estou, implorando a Ele que me faça obliterar cada momento cruciante, de me entregar prazer intenso ao pensar na imagem dela e deixá-la de amar por imediato.

Aprendi a me satisfazer enquanto não me torno padre. Creio não ser proibido me tocar da maneira que faço a deslizar as mãos na pele que pulsa. Até o momento não a tive em meu corpo, sequer penetrei seu íntimo, mais que naquele instante.

Supro todas as vontades insondáveis por ela porque neguei viver com Gaya. É assim que eu ajo. Sou fruto do sofrimento.

E Deus, Ele compreende que sou falho, contudo, ao ser um Pai misericordioso, entenderá que não se desiste de amar e desejar alguém no mesmo dia.

Ser padre é uma construção.

Reverendo² Franco Gregori. 

Ilustração de Franco Gregori por Ana Araújo

¹Cenáculo: É o termo usado para indicar o local onde ocorreu a última ceia de Jesus Cristo e onde atualmente está um grande templo. A palavra é um derivado da palavra latina cena, que significa "jantar"; o que por sua vez nos faz lembrar um momento de confraternização e de convivência harmoniosa;

²Reverendo: Pronome de tratamento para diáconos e padres.