ele não sabe o que significa

88 14 5
                                    

Finn Wolfhard.

Quando a próxima quinta-feira chegou, e junto dela a aula de Literatura, eu ainda não tinha falado nada com Millie sobre nosso trabalho em nenhum dos dias que antecederam a aula. Teria que dar um jeito de conversar com ela ali, já que fora da sala, ela nunca falava com ninguém – não que ela conversasse com alguém na classe.

Às vezes via ela andando por aí e às vezes a via na saída, mexendo nos cabelos pintados de azul e com a mochila de correntes e desenhos nas costas.

Passei pela porta e quando olhei em direção à minha mesa, Millie já estava ali, ouvindo música e batucando os dedos na mesa, no mesmo ritmo que eu ouvia da melodia saindo pelos fones de ouvido brancos.

Eu me sentei ao seu lado, e ela franziu a testa e estreitou os olhos quando notou. Eu ignorei – essa era a expressão corriqueira que Millie fazia quando alguém se aproximava.

Quando a Srta. Willians chegou, logo disse que nos cederia sua aula para que fizessemos o trabalho, como eu imaginei que faria. E que graças a todos os deuses de todas as religiões possíveis, ela fez.

– Precisamos conversar sobre o trabalho – falei no momento em que criei coragem, e ela tirou os fones que estavam escondidos, sendo tampados pelos cabelos castanhos e azuis, porém não disse nada.

Ela apenas abriu o caderno que estava à sua frente e o arrastou na mesa até mim.

– O quê? – perguntei.

– O trabalho era sobre Alice no País das Maravilhas. Eu já li esse livro um milhão de vezes.

– Ah... – respondi, sem entender onde ela queria chegar.

– Eu já fiz o trabalho na aula passada, enquanto ela explicava. Era só uma redação sobre o livro, com o resumo do que acontece nele e sua opinião – ela explicou e eu franzi a testa.

Peguei as folhas que estavam dentro do caderno dela e comecei a olhar. Ela havia realmente feito uma redação completa de cinco páginas, com citações e havia até mesmo desenhos da Alice no País das Maravilhas.

Ainda bem que eu não comprei o livro.

– Como você fez isso tudo na aula no meio da explicação? – perguntei chocado.

– Enquanto os outros dormem, eu geralmente leio. E enquanto os outros não prestam atenção no meio das explicações, eu faço os trabalhos. Esse foi um dos mais fáceis, era só escrever – ela explicou e deu de ombros, com seu sotaque britânico carregado sendo notado a cada palavra. – Você vai ler ou não?

Ela apontou para as páginas e eu as folheei outra vez, ainda um pouco atônito pelo o que tinha acabado de acontecer.

Comecei a ler o que estava ali, e ao contrário do que vocês podem pensar, que ela havia feito de qualquer jeito por ter sido no meio da aula, estão todos bastante enganados. Era a melhor redação que eu já havia lido. Ela escrevia muito bem, e eu ainda estava no segundo parágrafo. Sequer tinha notado ela fazendo tudo isso na aula passada. E ela estava do meu lado.

– Coloca seu nome depois. Não coloquei porque não sei qual é – ela explicou com naturalidade. Sua sinceridade aguçada já ia ganhando vida.

– Finn Wolfhard – respondi, e pela expressão dela, pude notar em seus olhos que ela dizia "eu não ligo" ou "eu não perguntei".

Depois disso, ela não falou mais nada. Apenas tirou outro caderno da mochila, já que o de literatura estava comigo, e começou a desenhar um girassol, sem se importar com a professora que às vezes notava que nós dois éramos a única dupla que não estava conversando e discutindo sobre o livro.

E eu fiquei ali, chocado, relendo várias vezes a redação para que pelo menos fingisse que estava fazendo alguma coisa. Seja qualquer coisa que fosse. Eu ignorava os olhares da professora que continuavam se direcionando para nossa mesa totalmente calada e quase dividida em duas.

🌻

O sinal tocou, e Millie logo saiu apressada pela saída, antes de todos os outros e sem motivo aparente para isso.

Depois que juntei todas minhas coisas, fui atrás dela, tirando coragem de algum lugar dentro de mim que nem mesmo eu sabia que existia.

– Millie! – chamei, antes que ela passasse pela saída da escola.

Ela parou de andar rápido e pude ver ela respirando fundo – e com toda certeza, revirando os olhos no processo.

– Sim, Wolfhard? – ela se virou e me olhou com cara de indiferença, também como se olha para alguém que você acabou de atrapalhar em algo.

– Você fez o trabalho sozinha.

– Dessa parte eu já sabia.

Me aproximei e expliquei:

– O trabalho era em dupla, e você fez tudo sozinha. A Srta. Willians provavelmente vai perceber isso.

– Ela sabe como eu sou e que sempre faço isso. A escolha de me colocar em dupla e não sozinha foi dela.

– Mas...

– Preciso ir – ela me cortou e começou a andar em direção à saída. – Talvez da próxima vez, você me ajude.

Próxima vez?

– Veremos, Wolfhard – ela me deu as costas e deu um tchauzinho por cima do ombro, me deixando ali, parado no meio do corredor sem saber o que ela queria dizer.

O modo em que ela falava meu sobrenome com ironia e como se quase estivesse rindo, era algo que eu nunca imaginei que ela ou qualquer pessoa faria, mas apenas naquela pequena conversa, ela havia feito duas vezes. Não seria surpresa se ela só me chamasse daquele jeito e se esquecesse totalmente do meu primeiro nome.

De qualquer forma, dias depois, eu descobri o que ela quis dizer com "próximo trabalho". Os lugares na aula de Literatura agora seriam os mesmos, e com as mesmas duplas da penúltima aula. Como ela já sabia disso, eu não saberia dizer.

O que eu sabia, era que agora Millie era minha dupla fixa nas aulas de Literatura do segundo ano do colegial. E eu não sabia como reagir em relação à isso.

Às vezes notava nas aulas de Srta. Willians algumas pessoas olhando para a mesa que eu e ela dividiamos. Provavelmente todos pensavam a mesma coisa que eu: eu era a primeira e única pessoa até agora a "fazer amizade" com Millie. E aos poucos isso se tornou comum, principalmente depois da notícia que meus pais me disseram naquele mesmo dia quando cheguei em casa depois da aula. Iríamos nos mudar.

colors | fillieOnde histórias criam vida. Descubra agora