Yo sé que fue por mi que acabo esta historia
Y queda em manos de mi memoria
Que por las noches te pueda ver
- Vas a Quedarte – Aitana
Acordou assustada novamente. As imagens daquela noite giravam em sua cabeça de forma vertiginosa. Tudo doía, não de forma física, mas apenas em suas lembranças que pareciam voltar com força todas as noites e com mais clareza em cada uma delas.
Sentia o coração aos saltos quando se ergueu buscando a garrafa de água ao lado da cama. Era algo que ajudava a se concentrar e voltar a realidade e por isso enchia a boca de água e contava até 10 antes de engolir lentamente, olhando para o teto escuro. Não estava mais na antiga fábrica de chapéus, nem tinha nada de sua antiga vida por perto para evitar as memórias.
Parecia uma ironia cruel que tivesse feito tudo aquilo sob o controle mental que apagara todas as suas memórias boas com seus amigos, mas agora ela não conseguia esquecer tudo de ruim que havia feito por mais que quisesse.
Havia revisto a suposta morte de Grey tantas vezes que sabia de cor, o momento que quase matara seu mentor lhe apertava o coração até o limite e era impossível não chorar, por mais que Graham fosse o irmão mais velho nunca teve e Shadowsan fosse a única figura paterna de sua vida, nenhum deles superava a lembrança de Jules.
A forma como ela tentara se aproximar, as palavras quase implorando para que Carmem voltasse a realidade. Jules sempre tivera fé nela, mesmo no momento mais escuro e ela a havia atirado contra uma tapeçaria cara, havia destruído seus óculos e a deixado inconsciente. Claro que a última parte não era culpa dela diretamente, mas não conseguia ignorar a dor naqueles olhos escuros e esse era o pior pesadelo que poderia ter.
Estava suada e com dificuldade de respirar, o clima ajudava a manter a sua situação, mas ela sabia muito bem que a o que mais a perturbava eram os pesadelos.
Tentou se afastar das cobertas leves que a cobriam até a cintura. Fazia um calor insuportável naquela época do ano, talvez devesse pensar em ir para a praia quando amanhecesse, mas era cedo demais para fazer aquele tipo de plano. Por hora teria que se contentar em abrir a janela e torcer para que o vento estivesse fresco.
Claro que não estava. Naquela altura ela já sabia que isso era uma esperança inútil de se manter, o ar nunca era realmente fresco naquele lugar, nem mesmo a noite. Mesmo assim ela se sentou sobre o beiral e ficou olhando o céu estrelado.
Jogou a cabeça para trás e chegou a fechar os olhos, mas então a memória de Jules a atingiu outra vez. Ela queria esquecer aquilo, mas parecia impossível e então desistiu. Se levantou da janela e pegou o celular de onde o havia deixado na noite anterior e abriu o navegador da internet.
O site que procurava já era o primeiro entre os recomendados, havia perdido as contas de quantas vezes o acessara nos últimos meses e ela não parecia ser a única já que Jules o atualizava todos os dias sem falta, as vezes até duas.
Leu a postagem recente, mais uma mensagem cifrada para ela. Era tão estranho pensar que haviam desenvolvido uma linguagem própria, tão estranho que ela poderia responder qualquer uma delas sem problemas, mas as palavras sempre pareciam faltar.
Carmem machucava as pessoas, era só isso que ela sabia fazer. Foi por isso que deixou seus amigos para trás, por isso nunca encontrara Júlia. Havia decidido começar de novo e deixar toda a sua vida anterior para trás.
E Júlia ainda tinha o problema de tudo o que ela já havia feito nos meses anteriores. Carmem achava que nunca mais teria coragem de encontrar com ela outra vez, mas dessa vez Jules estaria ali, na sua nova cidade em um café, esperando por ela. Seria como nos velhos tempos, apenas se ela tivesse coragem.
Ela não conseguiu dormir o resto da noite. Diferente das crianças no orfanato que pareciam ressonar em seus quartos.
– Tudo bem, cariño? – perguntou Carlota, tocando o ombro da filha e lhe beijando a cabeça.
Se conheciam apenas há alguns meses, mas haviam formado uma ligação forte e a mulher sempre parecia saber o que se passava na cabeça da filha. Carlota havia conhecido toda a história de Carmem e quando a filha lhe perguntara se a perdoaria recebeu a sucinta resposta de que não havia nada para perdoar.
Depois se sentaram para comer sorvete enquanto Carlota lhe mostrava as poucas fotos que tinha com sua filha e contara tudo o que tinham planejado para o seu futuro juntos depois que Wolfe deixasse a VILE.
– Eu conheço bem esse olhar – ela comentou se sentando em frente a filha, os olhos castanhos brilhando com uma dor mal escondida – Onde ela vai estar agora?
Já haviam tido essa conversa antes: "Seu pai sempre tinha esse olhar, esse medo de que nos machucassem". Sempre "nós", parecia que Carlota estava determinada a fingir que os anos não haviam passado para elas e Carmem estava disposta a fazer o mesmo e realmente parecia verdade quando a mulher lhe tocava as mãos com carinho.
– Aqui, na cidade – respondeu, ciente de que tinha um sorriso triste que não conseguia controlar. – Férias.
– Isso é bom – respondeu Carlota, um sorriso brilhante de incentivo que fazia as rugas nos cantos de seus olhos se acentuarem – Ela precisa de um descanso também.
Carmem tinha plena noção de como a mãe era bonita com os longos cabelos castanhos presos em um rabo baixo que o deixava volumoso e ao mesmo ressaltava os cachos avermelhados e a pele castanha. A única diferença para a filha era a idade que começava a aparecer ao redor dos olhos e os próprios com seu tom de castanho claro, próximos ao mel.
Sua mãe tinha um rosto bondoso, bondoso demais para imaginarem que ela havia sido uma agente de elite antes de conhecer Alex.
"Eu tenho certeza que ele se deixava ser pego, ele fazia de propósito" Carmem se lembrava dela comentando com os olhos brilhantes. "Nós nunca chegávamos no destino e eu nunca tinha coragem de entregá-lo e então começamos a trabalhar juntos"
Esse era um sentimento confortável sobre seu, uma ligação melhor do que a VILE. Não era algo palpável como sua mãe, mas era algo que ela conhecia bem. Nunca havia se deixado capturar, mas nunca precisou disso também.
"Jules sempre confiara em mim. Desde o principio" comentou distraída depois de ouvir a história e foi a primeira vez que vira aquele sorriso sugestivo da mãe, mas levara quase um mês para que Carlota levantasse a hipótese de que ela estaria apaixonada por Júlia.
Seu coração disparou, a mesma sensação que tivera quando a encontrara naquela festa em que estava roubando pela VILE e todas as vezes depois. Era uma bobeira, mas aquele assunto a deixava ansiosa mesmo que fosse claro que ela não sentia nada além de amizade por Jules.
– Talvez você devesse encontrar com ela dessa vez.
O comentário fez Carmem piscar algumas vezes, havia perdido o rumo da conversa, se perdido em pensamentos, mas mesmo assim entendera quase que imediatamente o que a mãe queria dizer.
– Ela está melhor assim – respondeu.
Guardando o celular e esperando o sermão de que se ela tivesse pensado dessa forma as duas não estariam conversando naquela mesa no meio da noite, mas ele nunca veio.
– Então eu posso ter vontade de tomar um café nesse horário e agradecer a uma completa estranha por trazer a minha filha de volta para casa – ela se levantou e beijou a cabeça de Carmem outra vez – É uma nova vida, mi hija, não desperdice as oportunidades que ela te dá. E também não vá dormir muito tarde. Te quiero mucho.
– Te quiero mucho também, mama – respondeu a observando sair pela porta, a primeira mecha cinzenta começando a aparecer por baixo da massa castanha, mas Carmem sabia que aquela rebeldia não duraria muito tempo.
Sua mãe era doce e bondosa, mas impiedosa com seus cabelos brancos.
O pensamento a divertiu, não era difícil imaginar como teria sido crescer com ela brandando ordens em espanhol, cantando algum bolero que ouvira da avó na infância enquanto a fazia dormir e seu coração se enchia de paz.
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Vas a Quedarte
FanfictionMeses se passaram após a prisão da VILE, mas o trabalho não diminuiu, porém Carmen Sandiego não é mais vista ao redor das cenas de crime. A ladra vermelha decidiu se aposentar e passar o tempo próximo a sua recém descoberta mãe e se afastar dos fant...