As cicatrizes desse amor

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Herculano não conseguia pensar. Só poderia ser um truque daquele coração que ainda pulsava em amores por aquela dona. Porém não era possível: aquela mulher tinha de ser sua duquesa. Mas como? Ele mesmo a enterrara. Será que a duquesa conseguira ludibriar a própria morte? Ele não duvidaria disso, a mulher tinha uma malícia que certamente lhe fora presentada pelo próprio diabo. Levantou o olhar, receoso. Ela continuava ali. Parecia prestes a ter um colapso nervoso. Os olhos de Herculano viajaram pelo corpo de Úrsula até voltarem para os lábios trêmulos, os lábios que tinham o gosto preferido do cangaceiro e então... os olhos. Ah, aqueles olhos de pedra preciosa que estavam cheios d'água e por isso brilhavam ainda mais intensamente.

Era como se o mundo e o tempo não existissem. A única coisa existente era aquele lugar, pequenino e simultaneamente tão imenso, onde o amor encontra-se e se faz reviver. O cangaceiro aprumou-se. Queria ver a duquesa de perto, tinha tantas perguntas, mas sabia que assim que pudesse colocar aquela dona nos braços, apenas a amaria. Ficaram longe tempo demais para...tempo demais... Por que ela não voltara antes? E como estava com aquelas roupas caras? Estaria enganchada com um cabra almofadinha? O coração apertou em desconsolo. Ela dera alguns passos em sua direção e ele, no afã, também se encaminhava, inconsciente, para perto da duquesa. E então, paralisaram. Uma das criadas aproximou-se de Úrsula, sussurrando em seu ouvido sobre a necessidade de entrarem na pensão de Cordata. Enquanto caminhava em direção ao edifício, lançava olhares rápidos por cima dos ombros, querendo desesperadamente dar um sinal ao seu capitão, mas ele já não estava mais ali. Cabisbaixa, permitiu ser levada ao seu quarto.

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Herculano estava em estado de desespero. Como ela ousava? Como podia sumir, se fingir de morta? Com qual direito ela brincava assim com o amor? Andando sem destino, era atormentado pelas traições da duquesa, traições que ele sempre perdoara, mas dessa vez...dessa vez não. Ele tinha muito a dizer e ela iria ouvi-lo, fazia questão de mostrá-la o que a ausência daquele amor causara em sua pessoa, falar como ele ficou meses sem conseguir dormir dentro da tenda que dividiam pois era atormentado pelo afeto que construíram ali. Não, ela não iria mais enredá-lo. Queria explicações e sabia que receberia mentiras, daquela boca que continha o veneno que corria por suas veias e artérias, sendo bombeado pelo coração e atingindo o homem por inteiro, só era possível a mentira e o cangaceiro tinha consciência desse fato. Mas ele a faria falar ou então enlouqueceria.

Se ele soubesse o preço desse amor, jamais teria sucumbido àquela dona. Lembrou-se, então, do olhar que ela lhe deu, parecia desesperado para lhe dizer algo, mas o quê, o capitão não fazia ideia. O coração sangrava e Herculano sentia que a insanidade já tomava conta de seu corpo, esse era o efeito da duquesa, ele precisava tê-la consigo para manter a paz dentro de si. Acabara de ver a mulher que mais amou na vida, a mulher que julgava morta. Seria um delírio? Não, ele sabia que não. Era ela. E ele iria atrás daquela mulher. Voltando à vila da Cruz, começou a pensar em como chegaria no quarto da duquesa sem ser visto. Úrsula não escaparia dele nem mais uma noite.

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Celeste falava incansavelmente, mas a amiga parecia estar em outro mundo, acenando positivamente a tudo que chegava aos seus ouvidos.

― Querida, você está passando bem? – a mulher mais jovem olhava com a cabeça levemente inclinada para a ex nobre.

― Creio ser o calor, você sabe que não me dou muito bem com esse clima nordestino, fora que o fato de essa ser minha cama por um bom tempo me dá anseios homicidas – Úrsula lhe deu um sorriso, mas a alegria não atingiu seus olhos.

― O calor não mudou o fato de você ser uma grande mentirosa, não é? – abraçando a amiga e dando-lhe um beijo na testa disse – Vou te deixar sozinha. Esse lugar traz lembranças doídas demais e talvez você precise lidar com elas, sim? Se precisar, sabe onde me encontrar.

Com um suspiro, a duquesa escutou a porta abrir e depois fechar com um estalo suave. Deitando na cama, abraçou a si própria. Queria chorar desesperadamente, entregando-se à aflição que aquela dor causava. Ele continuava o mesmo. O rosto sério e o olhar protetor. Como queria que Herculano estivesse ali para consolá-la, para dizer que estava tudo certo e que ela não precisava se preocupar. Por incrível que parecesse, o rei do cangaço sabia como acalmar Úrsula e sarar suas angústias, foram tantas as vezes em que, fortemente abalada pelas consequências de suas atitudes, lhe confessava o medo de nunca ter o perdão das filhas e ele, com aquele jeito que apenas ela conhecia, a abraçava, sussurrando palavras gentis que a duquesa nunca esperou ouvir, não só por serem ditas por um cangaceiro viril e rústico, mas também por perceber que ele se apiedava de sua situação, mesmo depois de tudo que ela fizera.

A duquesa sabia que tivera o privilégio de conhecer um lado tão especial e secreto de Herculano, um lado que nem o próprio homem conhecia. E ela jogara tudo fora. Pegara todo esse amor e carinho e simplesmente os jogou para o ar. Como doía pensar em tudo isso. Sentia o coração sendo perfurado por cada lembrança, cada beijo e abraço, cada noite em que apenas deitavam abraçados e conversavam sobre nada e tudo, até o sono finalmente pegá-los no colo. Sorriu tristemente ao pensar em como ele, ainda deitado e recém-despertado, adorava observar ela pentear os cabelos e quando via que havia terminado, apressava-se para lhe abraçar por trás, cheirando seu pescoço e depositando beijos fugazes em sua bochecha. Ela sentia falta daquele abraço, talvez mais até do que do ardor do sexo deles, porque naquele abraço ela encontrara seu próprio lar, lugar onde encontrou o perdão e entendimento, quando estava nos braços do seu amor, podia mostrar sua alma original. No abraço de Herculano, podia ser Úrsula e Úrsula apenas. 

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