Parte I: Prólogo
Fenner acordou como se tivesse caído de um penhasco. Sentindo seu corpo e a roupa de cama encharcados de suor, jogou o lençol para o lado, incomodado com a sensação na pele. Os membros rígidos pela idade demoraram a ceder, mas, acostumado, o idoso conseguiu se sentar, passando pela fronte uma mão que mais parecia uma aranha. Escorregou as pontas dos dedos pelas pérolas de suor que pontilhavam sua pele e percebeu que não era apenas o peso dos anos que o fazia tremer.
Respirando com dificuldade, ainda sentia pelo corpo a influência do pesadelo do qual acordara. O décimo em dez dias.
Olhou para suas mãos, abrindo e fechando-as, testando o controle que tinha sob aqueles espasmos.
Ele não sabia mais o que fazer. Já havia consultado dois alquimistas e um mago, mas nenhum soube dizer a causa exata desses sonhos. Fenner somente conseguia dormir porque o cansaço, eventualmente, o derrotava.
Aliás, chamar o que ele experimentava à noite de "sonho" era esticar a palavra além do limite do seu significado. Aquilo não era meramente uma sucessão de imagens assustadoras.
Aquilo era real.
Ele sentia cada um tal qual sentia o colchão ceder sob seu peso, tal qual sentia a madeira sob seus pés. Os cenários em que os vivenciava eram tão sólidos e vivos quanto seu quarto de pedra ou quanto a escrivaninha e o armário de madeira mais velhos que ele.
Aqueles sonhos não eram pesadelos.
Eram uma outra realidade.
Outra realidade tão palpável quanto a sua.
Vestindo suas roupas de lã e calçando suas botas de couro, Fenner saiu pela mansão afora, disposto a mover um pouco as pernas. Não iria conseguir descansar a cabeça após o que vivera no "outro lado".
Mesmo tendo trabalhado para os Lörn praticamente a vida inteira, era a primeira vez que ele presenciava ali esse tipo de fenômeno. E embora já tivesse ouvido falar em assombrações e coisas do tipo, não só os relatos eram pouco confiáveis como os peritos em magia os desacreditavam por não haver qualquer traço de mana fora do comum.
Porém, se antes ele duvidava, agora tinha certeza. Mesmo sem ter visto nenhuma criatura, apenas sentido sua presença, não havia como negar que havia coisas estranhas por ali.
Coisas muito estranhas.
Fenner saiu do castelete e caminhou pelo amplo quintal, na direção de um humilde amontoado de árvores que mal chegava a um bosque. Ao seu redor, um pequeno santuário engolido por trepadeiras se resumia a contornos marcados pelo luar; e um cemitério, com não mais do que dez lápides, marcava o local onde antigos Lörn agora dormiam.
Em outras noites, caminhar ajudava a tirar as imagens de sua mente, ajudava a trocar as visões pelo rosto simpático da lua, pelo lamento alegre das corujas e pela conversa dos grilos. O ar livre trazia, com seu repertório noturno, uma tranquilidade reparadora.
Mas não dessa vez.
Com o medo da última visita ao outro lado ainda reverberando pelo corpo, Fenner começou a notar que cada elemento que antes lhe trazia conforto, agora parecia sutil, mas bizarramente alterado. A lua parecia um olho vigiando-o, as corujas, um gemido de angústia, e os grilos, arranhar de criaturas inomináveis.
Aos poucos, com a respiração acelerando em um ofegar cada vez mais rápido, o idoso notou que seu medo já não provinha mais das recordações dos sonhos.
Seu medo estava vindo de outra coisa.
De algo.
Algo que o espreitava.
Algo que ele não podia ver, mas podia sentir.
E, a cada passo, sua presença se intensificava. Sem som, sem odor, invisível, a coisa se aproximava.
Era ele!
Era aquilo que o perseguia toda noite, que sua visão nunca capturava!
Tendo saído de seu mundo impossível, a coisa vinha agora buscá-lo.
O ar tornou-se monocromático e leitoso, entranhado por uma névoa pontilhada por flocos brancos que flutuavam como sujeira na água. Os sons secaram, craquelando como ossos, e o mundo pareceu virar de ponta cabeça, mesmo sem se mover.
Fenner girou em torno de si mesmo ao perceber-se cercado pelo "quase-bosque". As árvores, antes amigáveis, eram agora vultos escuros na névoa, como colunas em uma muralha de fumaça.
Santuário, cemitério e castelete, os três desapareceram a tal ponto que Fenner não fazia mais ideia de por onde havia entrado. Girava e girava em círculos sem conseguir reconhecer nada.
Quando decidiu arriscar uma direção qualquer, percebeu que, por entre os troncos, silhuetas de todos os formatos e tamanhos se moviam no limite do visível. Sombras que se mesclavam com o fundo quando olhadas diretamente, mas que não escondiam sua natureza se vistas de soslaio.
Um exército de criaturas.
Um exército de coisas.
Suor escorria em filetes pelas têmporas do idoso. Suor gelado. Suas pernas bambeavam e suas mãos, apertando o peito, tremiam.
E, de repente, quando o velho coração pareceu querer explodir suas costelas...
Ele viu.
Como um reflexo na água que ganhara uma terceira dimensão, uma paródia grotesca de uma silhueta humanoide surgiu das profundezas do nada.
Fenner mal era letrado, mas tinha convicção de que aquele "ser" não deveria poder andar, quanto mais existir.
Era uma violação viva de todas as leis.
Em espasmos impossíveis, a silhueta avançou na direção do idoso, que já não conseguia mover os pés, grudados que estavam pelo pânico.
Com os olhos vidrados na criatura, ele assistiu ao garrancho de boca gritar um som inaudível, mas que penetrava na alma como agulhas. Um grito inumano, um grito que era pânico e terror absoluto condensados em vibrações intangíveis.
Oscilando em milhares de dimensões ao mesmo tempo, o pesadelo se aproximou...
***
No dia seguinte, dando por falta do caseiro, os Lörn acionaram os demais criados numa busca que se revelou infrutífera.
A única coisa incomum que encontraram foi uma mancha preta na grama.
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Anjos e Vampiros - A Filha da Vampira
FantasíaAMOSTRA GRÁTIS. VERSÃO COMPLETA DISPONÍVEL SOMENTE NA AMAZON. *Finalista do Prêmio Wattys 2022* Freya é uma vampira que quer se reencontrar com sua filha humana. ...o que naturalmente traz algumas dificuldades. Primeiro, humanos tendem a não gostar...