Parte I - Freya:. 1

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Parte I - Freya:. 1

Com a mão apoiada no parapeito de pedra, Freya deixou seus luminescentes olhos de céu se perderem no breu que se estendia abaixo dela. Os algodões de neblina noturna se esfiapavam, rasgados pelos galhos e folhas das copas das árvores, trazendo à sua mente imagens das criaturas do pântano errando a esmo pelo lodo.

Desde criança, ela sempre fora ensinada a ter medo de locais com grandes quantidades de matéria em decomposição. E havia um bom motivo para isso: carne morta libera emanações negras capazes não só de adoecer e matar os vivos como, principalmente, reviver os mortos.

Fechar caixões com pregos e levantar cercas ao redor de cemitérios não servia para impedir invasores, mas sim fugitivos. Raros eram os que brincavam de ladrões de túmulos, uma vez que, ao retornarem, não o faziam mais com a mesma vida com a qual entraram.

Mas o problema da magia negra podia ser reduzido a volume e densidade. Um cadáver isolado não representa perigo algum. Vinte em um espaço pequeno poderiam reviver um ou dois. Agora, cem corpos era um perigo real. Os próprios coveiros precisavam passar por um processo doloroso de imunização a fim de que eles próprios não começassem a caminhar pelo terreno sem cumprir com seu trabalho.

Porém, pior do que cemitérios, pior do que vinte ou cem corpos juntos, era o tipo de terreno que se estendia diante de Freya. Carregados de todo o tipo de matéria em decomposição, os pântanos eram os laboratórios perfeitos para a magia negra testar todo o tipo de criação, sendo o Pântano da Morte talvez o mais famoso e exuberante de todos.

De nome pouco criativo, mas extremamente didático, esse era o local onde a não-vida proliferava em uma diversidade jamais vista em nenhum outro lugar.

E era exatamente ali, quase em seu centro, onde se localizava O Castelo.

Acomodado confortavelmente no topo de uma colina rochosa, e negro como tudo ao seu redor, ele se recortava contra o céu numa silhueta bastante sugestiva quanto ao que se poderia encontrar ali dentro.

Quando pensava nisso, Freya se sentia estranha. Ela e os companheiros eram, pelo que sabia, a única espécie sapiente imune à magia negra. E, nesse caso, suas imunidades vinham do lógico fato de que não se pode matar o que já está morto.

Mesmo após quase um ano sem que seu coração batesse uma única vez, ela às vezes se flagrava nessas bolhas de consciência, estranhando sua nova natureza. O que antes era um ambiente hostil, fatal, agora era sua casa.

Freya passou a língua nos compridos caninos num movimento outrora um tique e sentiu o gosto do sangue residual de sua última refeição. Seu paladar buscou no canto da boca uma última gota perdida ao deixar o músculo deslizar por entre os lábios, revivendo assim uma versão tênue de seu êxtase.

Com olhos frescos, a vampira refletiu sobre sua imortalidade. Imagens de um futuro indistinto tentaram se formar em vão, carentes de vivências reais com as quais se basear. Mesmo assim, mesmo sem ser capaz de vislumbrá-las com clareza, ela sabia que todas as demais raças – humanos, elfos, anões, lobisomens, demônios e anjos – envelheceriam e morreriam enquanto ela permaneceria jovem, presa numa aparência sobrenaturalmente bela e assustadoramente sedutora.

Essa ideia lhe gerava um frio na barriga indefinido. Sem conseguir compreender ainda o que lhe aguardava, ela não conseguia conceber o que era viver cem, mil, um milhão de anos.

No entanto, dentre os vários fios que costuravam seu futuro, havia um que se destacava.

E o fazia claro e límpido o suficiente para revirar seu estômago.

De todas as pessoas que ela imaginava sendo consumida pelo tempo, apenas uma lhe causava angústia.

Apenas uma.

Uma que, ironicamente, Freya jamais conhecera.

E era precisamente esse o problema.

Anjos e Vampiros - A Filha da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora