Borboletas & Corvos

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Segunda-feira, 24 de março, 6:00 a.m.

Nota,

Estico o braço para o outro lado do lençol e ele está vazio. Talvez, tenha acordado antes de mim. Levanto-me. Lavo meu rosto. Visto uma camisa azul estampada com listras e caracóis laranjas e uma calça boca de sino de veludo marrom caramelo. Calço um tamanco. Passo sombra azul nos meus olhos de jabuticaba, blush e gloss. Penteio meu cabelo pigmalião.

Vou até a cozinha.

Tio Jô está lá, sentado, tomando café na xícara Duralex. A fumaça do café embaça seus óculos quadrados. Óculos que nunca usou. Cardigã e calça social bem passados ao invés de roupas velhas e amassadas.

– Tio Jô? O que está fazendo aqui? Não devia estar na casa da praia?

– Resolvi dar uma passada para ver você – mostra os dentes em um sorriso, como se o tivesse praticado a vida toda para então mostrar um dia.

– De Guaratuba até Piraquara??? – Não pode ser uma visita espontânea, surpresas são bobagens segundo sua filosofia.

– Não está feliz em me ver?! – Torce o nariz. Agora sim, aqui está aquele carrancudo e mal-humorado que amo. Ele levanta a xícara e um brilho dourado pisca em seu dedo, ele estava namorando alguém? Resolvo não falar nada, nem fazer alguma brincadeira, ele as leva sério demais.

– Claro que estou! – Junto-me a mesa com ele. Tio João não está usando seu perfume preferido: tabaco. Não o abraço, ele odiava demonstrações de carinho; talvez por ver muitos velórios, ver muitos defuntos, muitos entes queridos em prantos e muitos abraços "desconfortantes", como descreve; o que era de se esperar do dono da Funerária Paz? Sirvo-me um pão com margarina. – Como você entrou?

– O Miguel abriu a porta para mim. – Ele morde um biscoito amanteigado. Sempre odiou aquilo e agora está comendo. Tio Jô lança um olhar interrogativo: o que foi? Balanço a cabeça, espantando minha estranheza.

– Miguel? – Ergo minhas finas sobrancelhas. Finalmente tio João o chama pelo nome. – O que aconteceu com o apelido carinhoso, Aquele Sujeito, que deu para ele?

– Ele é um homem de muitas qualidades – diz sem nenhum sarcasmo.

– Claro que é! Tenho bom gosto. Onde está meu amôrre? – Assim que o chamo.

– Já saiu – é tudo o que responde. – Café? – Tio Jô, o curto e grosso, está me oferecendo alguma coisa?

– Não! Estou grávida! – Passo a mão na minha barriga enorme. Oito meses.

– Ah, sim. É claro – fala como se minha gravidez fosse invisível, mudando de ideia em um curto balançar de cabeça.

– Preciso ir trabalhar. – Coloco meu prato na pia e bebo, em um gole, um copo de suco pronto. Não dá tempo. Escovo meus dentes no hospital, mesmo. – A enfermeira-chefe não pode faltar, a enfermagem não funciona sem mim. Vivinha me substituiria, mas isso não ficaria bem para o meu lado. Você lembra da Vivinha? A que fez o colegial comigo? – Tio Jô afirmou com a cabeça.

Muitos dizem que é ironia eu crescer em meio a cadáveres e trabalhar para mantê-los vivos. Não concordo. Acho que a vida e a morte são sinônimos. Você nasce sem conhecer a vida e morre sem conhecer a morte.

Eu nasci do ventre da morte. Quando o sopro da vida me deu boas-vindas, minha mãe deu seu último suspiro. Pálida como um defunto, cabelos negros como um corvo, assim me descreveram. Três anos depois, eu e meu pai sofremos um acidente de carro. Eu sobrevivi, ele não. Desde então, tio Jô cuida de mim.

"Nunca vi uma criança mais desleixada! ", diziam as más línguas. "Toma banho só uma vez por semana! " Para defender tio Jô, ele também tomava.

"Um banho dura uma semana, mais que isso é desperdício! ", falava.

Essas coisas enchem minha cabeça, principalmente quando ela já está esgotada.

– É domingo, você não trabalha hoje.

– Não é domingo!

– É sim!

Não argumento. Tio João é teimoso feito mula, mas com o tempo aprendeu a se redimir quando comete um "equívoco", como diz.

– Vista uma roupa de domingo, vamos para um churrasco.

– Churrasco?

– Da mãe do Miguel. Ela é muito festeira.

Seria algo normal a ser dito, se tio Jô a conhecesse.

As Peculiares Notas Invisíveis de ElizaOnde histórias criam vida. Descubra agora