Livros & Sogras

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Domingo/Segunda-feira, 24 de março, 9:00 a.m.

Nota,

Ao som de Os Mutantes, tento falar algo, porém todas as minhas palavras não fazem sentido. Olho tio Jô, pleno. Respiro fundo, acalmando meus pensamentos. Certamente era uma ilusão de ótica. O mundo, por mais louco que seja, é racional.

Pego meu livro e começo a lê-lo. A luminosidade borra as letras. Estico o livro para frente, para a sombra. Paro na página 120. Pego um lápis para anotar a última frase que li. Dois parágrafos embaixo dela está escrito, com minha ortografia: parei. Não, isso é normal. Eu apenas li as mesmas páginas duas vezes! Isso acontece. Mas, minha memória é tão boa! Minha primeira lembrança é quando eu tinha uma semana de vida, no velório da minha mãe. Seu caixão marrom café jazia no meio da sala que parecia tão grande, parecia que todas as pessoas do mundo vieram se despedir dela. O primeiro velório que fui. Isso se agarrou nas minhas memórias mais vivas, assim como o dia do acidente do carro.

O Chevette para em frente à casa bege da minha sogra. Ela, vestida com um macacão listrado, me recebe com um abraço. Depois, vai até tio João, há alguns metros, e o abraça forte e intimamente.

– Como ela está? – sussurra em um tom não tão baixo quanto o desejável.

João responde em uma voz impossível de escutar daqui.

Seguimos a fumaça do churrasco até o quintal dos fundos. Crisântemos brancos, amarelos e púrpuros me encaram. Perto da toalha azul marinho está a senhora do açougue, pondo a mesa. Ela levanta os olhos. Acena para mim e depois para tio João.

Um cachorro linguiça está perto da churrasqueira, se defumando com o rabão abanando. Se eu fosse ele, sairia dali, para não virar salame. Vou até lá e devoro corações de galinha.

Da porta dos fundos sai meu amôrre: jeans rasgado como um punk e outras peças que não estão em seu guarda-roupa.

As Peculiares Notas Invisíveis de ElizaOnde histórias criam vida. Descubra agora