Chás & Epígrafes

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Segunda-feira, 24 de março, 2:01 p.m.

Nota,

Tropeço. Caminho até a sepultura. Fico imóvel diante dela. Meus joelhos se enfraquecem. Caio.

Minhas lágrimas não sabem se transbordam para fora ou para dentro. Toco, com uma mão, a epígrafe fria e empoeirada e, com a outra trêmula, meu ventre.

Ouço passos vindos de trás. Levanto-me e viro.

– Quem é você? – pergunto. Não responde. – O que está acontecendo?

– Você não terminou de comer o pudim. – Retirou do bolso da calça cinza o pote. – Precisa comer, se não, o remédio não vai fazer efeito. – Encaro-o e não pego o pudim. – Não pode passar da hora.

Dou um passo à frente.

– Quem é você!? O que está acontecendo!?

– Você me conhece, sabe quem sou. – Seus olhos estão banhados de mansidão. – Venha, eu explico. – Estendeu a mão.

Cérebro, o que faço?

– Podemos ficar aqui, se preferir. – Senta-se no pé do túmulo. – Vamos ter que remarcar, mas tudo bem. – Olha para a epígrafe. – Carlos era um nome bonito.

– O que vamos ter que remarcar?

– Venha comigo e não teremos que remarcar. – Desvio o olhar. – Confia em mim, você sempre confiou.

Não falo nada. Ele levanta e, aos poucos, voltamos para o Chevette. Seguimos rumo a um edifício azul perto das cerejeiras calvas da Praça do Japão.

Esperamos um pouco e mulher de branco nos chama.

– Eliza, você sabe que dia é hoje? – ela pergunta, pronta para anotar em bloquinhos de papel e prontuários.

– Vinte e quatro de março de mil novecentos e – me dá um branco – oiten...ta... é, mil novecentos e oitenta, segunda-feira.

– Hoje é vinte e quatro de março de dois mil e dezenove, domingo. Eliza, você tem Alzheimer.

Um mundo novo gira em minha cabeça. Ela começa a falar outras coisas que se ofuscam. Meus cabelos se embranquecem, minha pele se enruga e minha consciência se recupera.

Ao meu lado está meu amôrre, eu seguro sua mão.


Domingo, 24 de março de 2019, 4:25 p.m.

Depois da consulta, vamos até a praça e nos sentamos no banco de frente ao lago.

– Vivinha me ajudou no açougue, hoje, mais cedo. Ela é uma boa amiga, você agradece ela por mim quando eu voltar para 1980? – Meu amôrre faz sim com a cabeça. – Sua irmã se parece muito com sua mãe, ela continua bonita, e seu sobrinho é você mais novo, ele tem sorte. – Cutuco ele e sorrimos. Entrelaçamos nossos dedos. – Você pede desculpas por mim para ele e a namorada, depois? – Faz sinal positivo. – O nosso bebê...

– Era um menino.

Viramos nossas cabeças para o lago.

–Lembro dos relógios, das horas, quando tudo aconteceu. Foi um pouco mais tarde do que agora. Teve poucas horas de vida.

– Teve. Deveria ter tido mais tempo e você também, ainda é nova para morrer.

– Todos nós temos nosso tempo aqui, alguns mais, outros menos. – Dou de ombros. – No final, a morte não é importante, porque, o que realmente importa foi o jeito que você viveu. O que assusta não é a morte, é o arrependimento da vida que teve. Eu não me arrependo. Tive meus altos e baixos e tive você. – Empurrei ele de levinho. – Vivemos uma vida boa. – Analiso seu rosto, todos os detalhes. – Você parece o tio Jô, envelheceu bem.

– Você também.

Selamos nosso amor em um beijinho rápido.

Olho para ele com um ponto de interrogação.

– É você, tio Jô?

As Peculiares Notas Invisíveis de ElizaOnde histórias criam vida. Descubra agora