Rotas & Curvas

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Segunda-feira, 24 de março, 1:45 p.m.

Nota,

Tio Jô morreu. Eu não sabia que ele tinha morrido. E, pelo visto, eu escrevi sua lembrancinha de velório.

Tento lê-lo. Minhas mãos tremem. Suas letras bruxuleiam, fogem de mim.

– Precisamos ir embora – diz "Tio Jô", aparecendo subitamente como uma assombração.

Pense!!! Pense!!! PENSE!!!

– Ainda não comemos a sobremesa.

– Comemos no caminho. – Mostra um potinho recheado de pudim de chocolate, cremoso e suculento. – Seu predileto. Precisamos ir embora agora.

Não me movo. Pense!

Talvez eu tenha lido a lembrancinha rápido demais, existe muitos Joãos neste mundo, e pudim de chocolate realmente era meu favorito. Vou com ele.

Entramos na estrada e começo a apreciar o pudim. Delicioso como imaginava.

Ele olha para mim e ri:

– Adorei o bigode de chocolate!

– Ele realça meus olhos – falo me barbeando no retrovisor com um guardanapo que minha sogra deu.

Mecho no pudim com a ponta da colher. Um ponto branco aparece no mar de chocolate. Cavo mais um pouco. Um comprimido!? Não, um pedaço de um comprimido. Remexo o pudim, os outros pedaços não estavam ali, não mais. Onde estariam??? Na minha barriga?

Guardo o pote no porta-luvas.

Estamos quase perto da minha casa: a direita, pela rua dos eucaliptos. Em vez disso, ele vira para a esquerda, para a rua dos cipós.

– Vai ter que fazer a volta. Era a outra estrada – digo olhando para trás.

– Estou na rua certa. – Acelera um pouco.

– Tio Jô, para onde estamos indo??? – Coloco a mão na maçaneta. Click! Ele tranca a porta. – Onde você está me levando?! – Acelera. – Para o carro!!! – Acelera. – PARA O CARRO!!! – Acelera.

Puxo a manga do meu suéter e quebro o vidro. Desacelera. Jogo-me da janela. Fico em posição fetal. Caio deitada. Rolo pelo asfalto. Vai dar certo, vai dar certo, vai dar certo, penso.

Paro de rolar. Corro! Olho para trás: ele me persegue.

Vejo o portão do cemitério aberto. Tropeço. Levanto-me. Corro para lá. Corro em meio ao labirinto de mortos e túmulos.

Olho de soslaio para uma epígrafe:

Carlos Môrres (24/03/1980 – 24/03/1980)

As Peculiares Notas Invisíveis de ElizaOnde histórias criam vida. Descubra agora