Linguiças & Suéteres

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Domingo, 24 de março, 8:00 a.m.

Nota,

Troco minha camisa por um suéter amarelo fininho e minha calça de veludo por jeans desbotado. Coloco uma pochete abastecida de tutu* e vou no açougue, seria má educação não levar nada. Talvez a linguiça tenha abaixado de preço de ontem para hoje.

Adentro na fila quilométrica, tio João tinha razão, era domingo. Olho para o painel vermelho de preços sobre as carnes. Rio em silêncio. Linguiça sem trena! Analfabetos, balanço a cabeça.

Enquanto espero e espero, penso: poderia até chamá-la de diário, se eu a escrevesse. Porém, a preguiça me impede. Prefiro guardá-la em meus mais pessoais pensamentos e apelidá-la de Nota. Se eu compartilhasse sua existência, todos diriam: "Eliza Teixeira Môrres, a doida que tem um diário mental. " Não posso negar, gosto de você, nunca me contraria. O que uns chamam de solidão eu chamo de companhia.

Pessoas começam a olhar para mim e cochichar. Puxo as mangas do suéter e continuo a sorrir. Aprendi que a opinião mais válida é a nossa própria. Segundos depois, um caixa do açougue com mais ou menos a minha idade chega.

– A senhora – diz para mim como se eu fosse um milhão de anos mais velha que ele, talvez quisesse ser cortês – está perdida? Quer que eu chame alguém?

Gargalho alto.

– Acha que eu não sei como voltar para casa?

– É a Eliza, moço! – Uma senhora que nunca vi na vida grita.

Ao falar "a Eliza", em uma espécie de código, o caixa acena a cabeça e sai.

Minutos depois, tio Jô aparece com uma manta xadrez, com a mesma expressão de quando eu fugi de casa aos oito anos porque tinha lembrado de uma briga com um amiguinho há dois anos atrás. Ele me cobre com o cobertor, o tiro pensando que estava com um parafuso a menos na cabeça, então vejo... meu tamanco, mas não meu suéter, minha pochete ou minha calça. Que vergonha!!! C-como? COMO??? Estou naqueles pesadelos que íamos para a escola do jeito que viemos para o mundo.

Voltando para casa, tio Jô não diz nada. Nenhum choque está presente em seus olhos âmbar, mais amarelados do que eram quando mais novo. Queria muito perguntar a ele sobre... isso, alguma coisa, mas não conseguia formar nenhuma pergunta.

Lá, visto o jeans e a lã. Pela fresta da porta, espio Tio João tirar da geladeira uma gasosa de framboesa, previamente preparada para um churrasco. Ele abre o armário ao lado do fogão e pega um copo, já sabendo que os copos ficavam ali. Vai até a pia. Ela está quebrada, tem um jeito específico para abri-la: precisa bater na torneira. E foi exatamente isso que tio João fez.

Pego um livro para ler durante a viagem, tio Jô não gosta de falar.

Entramos no Chevette preto e partimos. O céu escurece e uma garoa corre calmamente em minha janela. Do outro lado, o vento leva uma fileira de eucaliptos, um atrás do outro, como dominós. Para frente, um portal se aproxima. Nele está escrito: Piraquara. Como posso entrar em uma cidade que já estava dentro?

*Gíria dos anos 70/80: dinheiro.

As Peculiares Notas Invisíveis de ElizaOnde histórias criam vida. Descubra agora