A paisagem que precisamos descrever ao início de uma história é a base para uma abertura à imaginação. Porém, sinto ser impossível no momento. Como seria possível descrever um universo ilusionário criado por uma mente solitária? Tudo e nada são iguais e ao mesmo tempo são o inverso. Delírio, delírio.
Então, no início da minha gradual loucura, fui aprisionada em minha mente, no que deveria ser uma viagem escolar comum. E não estamos falando de um clichê onde alguém acaba morto e os outros precisam descobrir quem é o assassino (louco, não?). Infelizmente em toda história existe um pingo desse clichê, e aqui estou eu, o clichê. Minha personalidade é basicamente igual a todas as garotas otaku que rodeiam o mundo. Viciada em videogames, animes, cultura estrangeira, etc. O padrão atual.
O cheiro de grama molhada deixava meu cérebro em êxtase. Sentir a leve brisa de uma planície rodeada de flores poderia facilmente ser a melhor coisa que meus pulmões recebiam há tempos. Embora o céu estivesse nublado, com uma cara péssima e carregado de chuva, o clima estava agradável. Nem frio e nem calor, um tempo perfeito para sentar e olhar os outros alunos desesperados com a possibilidade de chuva. Os coordenadores e professores estavam discutindo sobre isso, enquanto vez ou outra algum deles olhava para cima, como se as nuvens fossem embora em um passe de mágica. Seria a primeira vez que eu iria dormir fora de casa, e devo admitir, a animação me consumia. Obviamente eu não sou o tipo de garota que escancara para meio mundo o que sente, ainda tenho vergonha do que irão pensar.
O motorista conversava com os outros adultos responsáveis, não muito longe de onde eu estava.
- O que faremos? - A professora Margaret era conhecida por seu jeito gentil e carinhoso de tratar os outros. Sua voz era tão calma, combinava perfeitamente com sua blusa preta com símbolos de rock estampada. Suas correntes caindo do bolso apenas deixava sua aura mais fofa e aberta. Sua calça jeans rasgada nos joelhos mostrava que ela estava aberta para qualquer pessoa que quisesse conversar.
Ela claramente não condizia com o que vestia. Na sala de aula ninguém estranhava sua vestimenta, seu jaleco protegia a roupa descolada. Por algum motivo algo não me agradava no modo que ela olhava para os outros.
- Devemos rever essa viagem? - Indagou o motorista.
Como se algo quisesse reforçar a pergunta, uma leve garoa passou a nos atingir. Demoraria uma semana para que aquela fraca garoa conseguisse molhar minha camisa completamente, mas era explícito que iria piorar com o tempo.
- Bom, nós temos as nossas barracas... e amanhã chegarão os quiosques. - Professor Júlio. Ele era o pior professor que poderíamos ter. Seu corpo era baixo, parecia um aluno. Seu rosto, ainda sem qualquer resquício de pelagem, era redondo e muito bonito. Aparentava ligeiramente um adolescente indo para a fase adulta. Mas nada se comparava às aulas dele. Não ouvia os alunos, nos deixava com as mãos dormentes de tanto escrever, era frio e parecia sempre distante. Ninguém sequer ousava conversar com ele. Sem contar com seu rosto fechado - mesmo que isso só o deixasse mais lindo.
Me espantei ao perceber que não sabia o que era quiosque. Quase fui perguntar para algum professor ali, mas acho que se irritariam comigo por estar ouvindo conversa que não é da minha conta.
Meu corpo foi levemente jogado ao lado com um empurrão.
- Até quando ficará sentada, Soph? - Jack, com seu rosto risonho me cumprimentava.
Jack era amigo de todas as pessoas naquela escola. Nunca vi ele se estranhar com uma única pessoa. Era carismático demais, até ficava estranho com isso. Seu sorriso era estranho. Não que fosse feio. Parecia... doente. E seu dente faltando não era muito atraente. Suas sardas combinavam com a banguela na boca, já que era o dente da frente que faltara. Seus olhos estavam sempre bem abertos, se você olhasse por muito tempo algo fazia mal. Mesmo que ele fosse super carinhoso e atencioso com todo mundo, nada me tirava da cabeça que poderia ser um assassino sangue frio.
- Jack, o que é um quiosque? - Movi meu quadril um pouco mais para longe, dando espaço para ele sentar sem ter que ficar apertado.
- Hm... são lojinhas montadas, sabe? Como aquelas da praia, creio eu. - Ele colocou a mão na cabeça, sorrindo levemente como um bobo.
"Os professores estavam planejando fazer um tipo de festival no acampamento, mas por quê?" - Meus pensamentos voaram tão rápido quanto o Jack voltando para a rodinha de amigos.
Não demorou muito para a chuva piorar. Para o adolescente, quando se está com outros adolescentes qualquer coisa é motivo para gritar, então era o que todos, ou a maioria, estavam fazendo. Seus rostos alegres apontavam pra cima, seus pés pulavam na grama, sujando suas calças. Algumas pessoas correram para dentro dos ônibus - havia três. Outros só continuavam brincando na chuva, assim como crianças pequenas fariam, em situação semelhante. Eu apenas sentei no banco bem em frente à porta. Já estava totalmente triste, com toda certeza aquela viagem seria cancelada. Não teria como montarmos nossas barracas com todo aquele temporal, que já estava relampeando. E então, começou o que seria meu declínio ao delírio. Enquanto eu observava o pessoal subindo no ônibus, do outro lado da planície verde vi duas pessoas entrando na floresta. Um deles possuía uma cabeça totalmente desproporcional para o corpo, não era comum. Tinha um aspecto de desenho animado. No momento apenas pensei que era uma máscara ou fantasia, afinal... a cabeça era azulada, com alguns detalhes roxos. Sem cabelo e com as orelhas em cima, assim como felinos. Não era possível alguém ter uma cabeça daquele jeito. Mas, por estar muito longe não dava para ver os detalhes. A pessoa que seguia parecia totalmente normal, diferente da primeira.
- Professor, nós iremos esperar a chuva passar, né?! - Alguém no fundo do ônibus perguntou com uma voz mimada e melosa. Eu sempre esqueço o nome dessa menina. Todos os garotos babavam por ela, como se fosse algum tipo de deusa. Mesmo que seu cabelo fosse desgrenhado, pelo tanto de química que passou. Cada semana era uma cor diferente. Tratar o cabelo daquela maneira deveria ser um crime de tortura. Sua testa vivia oleosa e com um aspecto sujo, eu conseguiria fritar um ovo com aquilo! Sem contar no cheiro... Seu bafo de cigarro era a pior alegoria do inferno que eu já senti. Vai saber o que já passou por essa boca.
- Não sei, Elisabeth. Estamos vendo isso, então não apresse. - Lembrei o nome da guria. O professor que respondeu grosseiramente - não que eu sinta pena da Elisabeth - fora o Terceu. Provavelmente a pessoa mais velha do mundo. Em sua alma, ao menos.
Um professor contava os alunos, apontando para cada um e colocando números na gente. Enquanto o outro ficava observando o ambiente dali. Terceu e Júlio, que dupla magnífica caiu no ônibus que eu vim.
Alguém chamou o Terceu, provavelmente Elisabeth com alguma pergunta sem noção, e já que o Júlio estava concentrado na contagem de alunos, o pobre coitado foi ver o que ela queria.
Minha curiosidade quanto às pessoas que vi estava me corroendo. Minha perna balançava em resposta à ansiedade, eu iria morrer se não descobrisse o que era aquela pessoa com a cabeça enorme.
- Professor, posso usar o banheiro? - Minha mão foi ao ar. Minha ansiedade tomou conta do meu corpo por um momento e já havia me arrependido de tal pergunta.
- Ué, vê se não tem ninguém usando e entra. - O professor Terceu falou de modo bem grosseiro, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo (tá, talvez seja). E para piorar alguns alunos riram baixinho. Meu rosto estava quente de vergonha.
- Se o senhor conseguir entrar nesse banheiro sem vomitar, me avisa.
Ele estava inclinado para a Elisabeth, ouvindo alguma baboseira que parecia estar enchendo o saco, e se virou para mim. Nesse momento senti receio da grosseria que poderia vir de sua boca. Seu rosto, pela primeira vez, estava indescritível. Não sabia se ele estava raciocinando minha resposta atravessada ou o quê.
Então ele fez uma cara de "o que quer que eu faça?", mas não disse uma única palavra. Fiquei um pouco feliz, sinto que fiz algo admirável. Terceu não é tão mal assim.
- Eu vou na floresta, rapidinho.
Ele arregalou os olhos, já conseguia prever os gritos dele, mas sai antes que pudesse ouvir qualquer coisa. Meus passos desengonçados correram pelo gramado em meio à chuva. A euforia não cabia no peito. Não era sempre que eu tinha coragem de fazer isso.
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cyberspace
FantasyInspirado em um mundo fictício, Cyberspace é um romance destinado a jovens adultos. A história ronda nossa protagonista, Soph, adentrar em uma realidade diferente da habitual. Seu destino passa a ser moldado a partir da apresentação aos coadjuvantes...