Capítulo - 4

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- Aqui não é seguro. Eu irei invadir seus sonhos, tentarei explicar por lá. – Seus braços enrolaram-se em mim, erguendo-me em um simples movimento. 

Seu braço de metal era frio, um aperto forte, diferente do braço normal, que me segurava levemente pelos ombros. Enquanto eu não conseguia me mover por causa da pressão daquele lugar, ele conseguia correr comigo em seu colo.

- Pode me explicar o que são vocês? – Insisti na pergunta.

- Somos humanos, cara. você é burra? – Suas chamas voltaram a brilhar fortemente. As labaredas quase encostavam nos galhos.

- Humanos não são vulcões prestes a explodir...

- Eu já disse que explicarei em seus sonhos! – ele mordeu os lábios ao ver a luz voltando a acender, e muito mais próxima do que antes. – Você atravessou a costura, veio até nós por vontade própria... mais ou menos – Ele ofegava entre palavras

Seu braço parecia cansado por me carregar e correr. Não lembro de ter desmaiado tão longe do limite, mas ele corria cada vez mais rápido. Sua fala estava ofegante, seu único braço de carne e osso estava tremendo. Se eu não aguentei meu próprio corpo, mal consigo imaginar o quão forte é esse garoto.

- Você consegue andar sozinha? – Seu corpo corria para frente, desviando dos galhos e raízes que surgiam, mas seus olhos estavam colados na luz, que se aproximava rapidamente

- Tentei isso ao entrar aqui e quase morri – E era verdade, meu corpo estava estilhaçado com aquela pressão. Mover minhas pernas era o mesmo que chutar uma parede.

Sem parecer com vontade de responder, seu rosto se transformou em puro ódio. A primeiro momento pensei ser por minha causa, mas não tinha reparado que a luz havia nos alcançado.

- DEVOLVA!

Eu queria que as coisas mais estranhas naquela noite fossem os dois garotos. Mas o que estava ali, com uma mão estendida e um rosto deformado, me deu o pior sentimento. Sua boca era costurada, mas de forma frouxa. Seus olhos eram ocos, dois buracos encaravam o foguinho. Seu cabelo parecia ter ficado um bom tempo mergulhado no esgoto, colado em seu rosto enquanto escorria uma gosma preta.

Seu corpo estava completamente nu. Seu peito mantinha um enorme número de buracos e de cada um escorria a mesma gosma, tão negra quanto a escuridão do céu.

- Você... – Foguinho começou a falar

Suas palavras foram cortadas por uma espada de duas mãos. Seu brilho era excepcional, exalava um branco visível metros de distância. Era o que brilhava naquele monstro. O som do estrondo ao chocar a espada no chão foi como de um trovão.

- Teve sorte que estou de mãos vazias. – Não percebi o momento que desviara do golpe, mas se acertasse eu estaria cortada em duas. A perna do foguinho segurava a espada no chão. Ele me apoiou na mesma perna, dando mais peso. – Hm, mais ou menos

Mas o monstro não pareceu se importar. Ele colocou todo seu peso no cabo e empurrou a espada pra cima, desequilibrando o foguinho. Aquela coisa investiu em um ataque horizontal. Os pés do foguinho agiram rápido demais para eu notar, mas fomos parar atrás de uma árvore em milésimos.

A árvore foi destruída com o ataque horizontal. O tamanho daquela espada era descomunal. O olhar do foguinho me congelou por um instante.

Suas chamas estavam me queimando de tão forte que estavam. O azul dominou o branco, mas não era apenas isso. O ódio que exalava do único olho orgânico transbordava. Ele me jogou às costas e avançou enquanto o monstro recobrava o equilíbrio que perdera ao cortar a árvore em dois.

Sua mão de ferro segurou o fino pescoço do monstro. Ele tentou se desvincular, dando murro no peito do foguinho e tentando erguer a espada com a outra mão. Todas as veias do pescoço do foguinho se saltaram em um urro. Então o monstro ficou suspenso no ar, acima das nossas cabeças. Sua mão acabou soltando a espada, que imediatamente perdeu sua cor e aura.

Sem que desse tempo do monstro se soltar, sua mão de ferro fora violentamente jogada ao chão, chocando a cabeça daquilo em uma raiz.

Um som nojento de osso quebrando ecoou por entre as árvores, mas nada dava indício que o foguinho iria parar. A mão subia e descia, levando e trazendo a cabeça do monstro, já totalmente mole e sem vida. Seu crânio estava exposto.

- Ele já morreu – Meu rosto desviava das labaredas que subiam da sua cabeça.

Seus olhos ficaram presos ao corpo por alguns instantes, encarando a cabeça daquilo – que parecia uma massa. O ódio fora embora, junto àquela vida. Voltou a manter o olho entreaberto. Seu peito se movia rapidamente, tão pesado quanto a respiração. Estava completamente esgotado. Suas chamas recuaram totalmente, estavam juntas ao cabelo. Seu olhar subiu rapidamente, lembrando-se do cabeçudo. Nenhum sinal de outro ser como aquele. A floresta estava escura e silenciosa.

Mantivemos a atenção virada à direção que o cabeçudo havia ido. Me senti aliviada ao vê-lo saindo da escuridão, caminhando em nossa direção. Desviava dos galhos que iriam direto em seu olho, seus passos eram desengonçados. Seu braço direito segurava o esquerdo, como se fosse fugir. Olhava para o chão mais do que para frente.

Sem esperar que ele nos alcançasse, foguinho passou a andar lentamente. Mantivemos silêncio no caminho até o limite, que demorou para chegar. O cabeçudo, após nos alcançar, manteve uma distância. O som de seus passos estavam longe e devagar. Em contrapartida, o foguinho estava apressado. A respiração ficava mais e mais densa. Mas nada dizia, não reclamava ou exibia expressão de raiva. Ele não parecia se incomodar comigo nas costas. Vez ou outra me ajeitava para que não caísse.

- Daqui tu consegue ir, certo? – Disse o foguinho, me colocando no chão. Seu rosto pareceu aliviado depois de estalar as costas.

Depois que atravessei a costura que separava a loucura da realidade, meu corpo voltou a ficar leve. Eu precisaria de um mês na cama para aliviar a dor.

- Por que estávamos tão distantes?

Meus olhos estavam se acostumando à escuridão em frente. O chão molhado lembrava-me que eu chegara na realidade. Fazia frio daquele lado.

- Star te carregou até lá, e iria levar mais longe se eu não aparecesse – Foguinho olhou irritado ao cabeçudo, que estava logo atrás. Os dois permaneceram do outro lado da costura.

- Sei. Provavelmente enlouqueci. O que era aquela coisa toda cheia de buracos?

Os dois não pareciam com vontade de responder.

- Mesmo que digamos, você não entenderia. Não agora...

- Então não adianta eu perguntar sobre essa "costura", sobre a diferença de cada lado, o motivo do Star me carregar para dentro dali e por que estavam andando pela floresta desse lado?

Eu andava de um lado para o outro com a mão no rosto, pensativa. Mesmo que não fizesse sentido pensar em coisas além da minha inteligência.

- Existem coisas mais urgentes para resolver. A pressão não é a única coisa diferente dos dois lados. Espero que ache o caminho de volta sem problemas. – Os dois caminharam para longe.

- Espera! – Meu pé pisou na costura. Gritei o mais alto que pude – Você havia dito que iria me contar nos meus sonhos!?

Antes deles sumirem na escuridão mórbida daquele lado, foguinho acenou de costas, sequer virou para me olhar.

De pé ali, parada no frio noturno daquela floresta, lágrimas escorreram dos meus olhos. Achei que fosse algo relacionado ao outro lado, algo que sumiria ao voltar para minha realidade. Mas aquela tristeza alojada em meu peito não se dissipou. Por algum motivo, todos meus maus momentos eram remoídos depois que entrei naquele lugar. E continuavam mesmo após sair.

Por que tudo está tão forte em minha cabeça? 

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