Capítulo - 2

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Na verdade, eu nunca tive essa coragem. Odiava me destacar, chamar atenção para o que quer que fosse.

E agora estou correndo em direção à floresta, curiosa para saber o que eu havia visto minutos atrás. O som dos meus passos na grama molhada eram as únicas coisas que eu queria ouvir, ou que me permiti ouvir. Mas, obviamente Terceu estava falando algo, de pé na porta do ônibus. Meu rosto virava para trás toda vez que ele dizia algo – eu não entendia nada e nem queria. Ali, sem perceber o que eu estava sentindo, vejo que já estava sendo absorvida pela loucura daquele lugar. Mesmo sem adentrar no limbo maldoso em que cada gota de sanidade faz falta, eu já conseguia sentir seu efeito. Meu peito subia e descia com a respiração ofegante e excitada. Normal visto de fora, uma garota que respirava ofegantemente era o que se esperava após correr alguns metros rapidamente. Meus lábios estavam levemente abertos em um sorriso simplório. Me senti mais excitada ao ver o professor correndo alguns metros para longe do ônibus, se molhando da cabeça aos pés no instante que colocou os pés para fora. Era engraçado por ele ser baixinho e gordinho, seu cabelo era tão ralo que pouco molhava. As gotas caiam diretamente em seu rosto, o que pareciam lágrimas. Seu rosto virado em uma raiva impaciente, provavelmente uma mistura de surpresa por sua aluna sair correndo na chuva, e de ter que se sujeitar àquilo por causa dela, enquanto gritava algo que sequer chegava aos meus ouvidos.

Da janela do ônibus a galera olhava a cena como uma salvação do que seria uma decepção de viagem. Não é todo dia que se vê o Terceu correndo na chuva gritando furiosamente.

Então fui recebida pela primeira árvore da floresta. Estava escuro mais a fundo. No céu o sol se escondia, na floresta ele sequer existia. Evitei pensar, para que minha coragem milagrosa não esvaísse. Me apoiei na árvore que me recebeu e adentrei na perdição escura e úmida. A grama era tão escassa quanto a luz, só se via presente uma terra molhada e mal cheirosa. As enormes raízes faziam companhia para as folhas caídas, postas grosseiramente uma em cima da outra. Um verdadeiro labirinto de raízes para insetos. Olhei para trás diversas vezes, apenas como ponto de referência. Não demorou muito para que os ônibus amarelados sumissem do campo de visão, dando lugar a espessos troncos de madeira e galhos virados ao solo. Sem som algum, com a visibilidade em estado precário, tudo o que poderia me guiar era pura intuição feminina.

"Como aquele cabeçudo conseguiu passar por esse lugar sem ter um galho enfiado no olho?"

Minha animação e excitação do início foram rapidamente substituídos por um sentimento parecido. Medo. Meus sapatos estavam sujos de lama, mas nenhuma pegada poderia ser usada para me guiar de volta aos outros. A chuva não parecia estar ao meu lado. Eu poderia apenas voltar reto, mas a floresta naquela posição estava densa, parecia uma selva. E a escuridão do dia só piorava o sentimento de solidão que se alojava onde tivesse espaço do meu corpo. Passei a me mover mais devagar por entre as árvores, olhava para o chão com medo de pisar em algum galho e fazer barulho.

E, assim como minha coragem avassaladora do momento anterior, meu medo tomou conta de tudo. O suor e a chuva se misturavam em meu rosto. Meus pensamentos se entrelaçavam em uma briga, onde eu me irritava com a tola decisão que tomara, e por onde eu iria continuar a caminhada. Eu queria continuar em frente, e percebi que os dois sentimentos brigavam em busca de território em meu peito. Coragem, vinculada à curiosidade e excitação. E o medo do desconhecido.

Tudo isso em questão de alguns minutos. Seria eu a pessoa que se perdeu mais rapidamente em uma floresta? Já conseguia ver uma estrofe no livro dos recordes, escrito algo como "A menina mais sem senso de direção do mundo, capaz de rivalizar com um pirata de cabelo verde". Com toda a certeza não seria motivo de orgulho.

A chuva parecia piorar com o tempo, a terra ficava mais pesada e estava cansando muito mais andar naquele lugar. Sem contar com minha roupa encharcada grudada à pele, dando uma das piores sensações que existe no mundo. Meu cabelo, mesmo que curto, parecia pesar muito mais. Colado à testa, ele escorregava em minhas bochechas, quase chegando ao pescoço. Minha boca começou a tremer de frio. As árvores deixavam o clima muito mais gelado, combinado à chuva... nada bom.

E, mesmo com tudo indo contra, meus pés ainda se moviam para frente. Cada galho estremecendo ao vento me davam alerta. Minhas mãos estavam abraçando meu próprio corpo, em reação ao frio.

Por fim, em meio ao caos descontrolado e aterrorizante, com os risos do vento passando por entre os galhos mais altos das árvores mais altas, cheguei em um lugar. Minha boca tremia de frio, meu corpo sustentava o que chamara de coragem em um momento. Eu olhei para frente com a mais pura curiosidade de uma garota de dezesseis anos, todo o meu medo fora engolido e estremecido por tal. Passos de distância, uma árvore me recebia. Era diferente das outras, afinal, sua própria existência era o que movia meu corpo em sua direção. Na verdade, tudo o que se encontrava depois dela era diferente. O vento parou, como um presságio do que eu deveria fazer, então me mantive estática, embaixo da chuva pesada que me preenchia e transbordava.

E o sol banhava a árvore. Como no limite do possível, a chuva parava de cair metros adiante. Encostei a mão na árvore, que sem um pingo de água se mantinha. Meu braço estava livre das gotas d'água, enquanto minha cabeça ainda era alvo da chuva. Era como uma divisão de real e falso. A chuva simplesmente parava de cair a partir de uma linha imaginária logo em frente. Poucos metros antes da árvore em que minha mão direita segurava, tentando descobrir se eu sonhava ou apenas havia ficado louca, a chuva era substituída por um sol quente de verão. Banhava minha mão e esquentava, tão real quanto a chuva que cobria o resto do meu corpo. Olhando para o céu, percebi estar ficando louca. Do lado em que a chuva caía, as nuvens estavam cobrindo tudo, carregadas de água e relâmpagos. E do lado em que o sol banhava a floresta mais adiante, nenhuma nuvem era vista, praticamente. As que se eram vistas estavam longe demais. Movi meu corpo lentamente para o limite da realidade, mas ainda embaixo da pesada chuva.

"Costura?"

O mundo estava costurado. Existia uma linha costurada no limite. Uma fina linha perfurava a terra dos dois lados, juntando cada parte. Porém, as duas partes não eram continuidade uma da outra. Uma raiz se deslocava da árvore lodo à frente e caminhava em direção à linha do limite.

Então sumia.

Não passava da linha, apenas sumia. Como se não existisse desse lado do mundo. Me agachei lentamente, analisando o que aconteceu com a raiz. Para minha surpresa, tudo o que deveria atravessar a linha apenas sumia. Folhas que estariam entre os dois lugares eram cortadas ao meio. Galhos que se atreviam tentar fazer isso pelos ares sofriam do mesmo mal. Eram cortados.

Engoli o seco. Olhei para o céu novamente e percebi que as nuvens também eram cortadas. Como uma edição errada no photoshop. Nada tinha continuação, apenas parava de existir. 

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