Capítulo - 3

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O ápice de toda perdição é se deixar levar, cair no chamado. Me aproximei do limite, olhando fixamente à linha que costurava o que poderiam ser dois mundos diferentes. Minha mão direita estava intacta, mesmo depois de atravessar, então deixei minha euforia me levar. Meu pé passou primeiro, devagar para ter certeza que nada de ruim aconteceria.

No instante em que meu corpo passou para o outro lado, onde eu via a chuva cair sem me molhar, meu coração disparou. Não fora uma expressão, ele realmente ficou muito rápido. Sentia batendo fortemente em meu peito e acelerando meu sangue. Minha respiração passou a pesar e minha visão escureceu. Me apoiei na árvore, virada em direção à outra floresta, a real. Minhas mãos em meus joelhos, e o que me equilibrava era meu cóccix apoiado em um tronco. Mesmo que não parecesse, ali era diferente. Não apenas no clima, mas tudo o que rodeava. O ar parecia arder ao ser respirado, parecia ser uma fina massa de oxigênio planando, como se eu pudesse pegar e comer. Meu corpo pesava mais ali do que debaixo da espessa chuva. Era difícil mover meus braços, pareciam ter o dobro do que pesavam antes.

Não era um lugar qualquer. Meu corpo não aguentaria por mais dois minutos. Me pus ao chão, lentamente. Arrastei minhas costas no tronco da árvore e observei. Com o calor daquele sol minhas roupas não demorariam para secar...

"será que tem alguém procurando por mim?" – Meu corpo todo pesava e doía. Desmaiar não parecia uma má ideia naquelas condições. Ah, se eu tivesse em qualquer outro lugar no mundo...

...

- O que faremos com ela?

Ainda de olhos fechados, ouvi falarem. Não tinha nenhum outro som ali. A chuva não parecia estar caindo mais. Meu corpo pesava, mesmo que eu estivesse sentada, sentindo a árvore em minhas costas, como uma pressão empurrando-me ao chão. Mas eu sequer me importava com o peso acrescentado no corpo, ou na posição que desmaiei, deixando minhas costas ardendo de dor, o que pegou toda minha atenção fora a voz que escutei.

E tudo o que passou a me acorrentar se tornou indescritível. O sentido virou do avesso, e mesmo sem enxergar o que estava em minha frente, sabia que seria um choque.

- Do que está falando, cara? – Ele disse como se alguém tivesse respondido à pergunta anterior. Mas nada emitiu som nesse meio tempo, extremamente curto, em que se manteve em silêncio.

Duas pessoas estavam de pé se entreolhando. Após ouvir alguém, seria impossível manter meus olhos fechados. Meu corpo já tremia de medo, fingir não estar acordada seria inútil. Me apoiei em uma grossa raiz que contornava minha cintura e olhei um pouco para trás, vendo os dois.

- Por que você costurou aqui, trouxe ela e não contou para ninguém?! – A voz que ouvi antes vinha de um garoto loiro. Suas falas exalavam raiva. As veias saltavam do pescoço, e alguns pingos de baba voavam da boca. Seu corpo estava virado na direção contrária a mim, então eu via apenas uma parte de seu rosto.

As pontas dos fios do cabelo estavam em chamas. Labaredas de um fogo completamente azul subiam em direção ao céu – que nesse momento estava de noite. O cabelo, mesmo com as chamas cobrindo as pontas, mantinha a cor loira fortemente. Mesmo com a voz exaltada, o olhar era preguiçoso em direção ao outro menino. A cor escura do olho esquerdo – o único que se era possível ver – combinava com a profunda olheira. De seu nariz escorria algo, e eu torcia para ser meleca. Porém tinha uma cor radiante que chegava a iluminar seu rosto, um azul vívido. Sua mão ia ao bolso de um enorme casaco preto.

E o outro menino... Sua cabeça era-me familiar. Aspectos roxos e azuis cobriam-na. Era totalmente redonda, sem muito detalhe. E isso que me assustava. Parecia ter sido desenhada. De longe seria facilmente confundida com uma máscara. Seus olhos eram grudados no rosto, sem relevo algum. E, ah... as orelhas que eu comparei com de felinos, nada tinha haver, apenas a posição na cabeça. As duas enormes orelhas eram redondas. Uma com a cor roxa e a outra azul. Seus olhos sem expressão alguma, mais fechados do que abertos. E nenhuma boca.

Eram as duas pessoas que eu havia visto entrar na floresta. Pisquei duro diversas vezes para ter certeza de que não fosse apenas imaginação. Porém, não era o caso. E meu sorriso torto se intensificou com o que meus olhos presenciaram logo após.

- Nós só temos que conversar com ela, calma.

Nenhum som saiu do menino cabeçudo, não existia voz pairada no ar. Ele escreveu. Suas palavras saíram como uma legenda, abaixo de sua cabeça enorme. Conforme ele dizia, as letras apareciam.

Nessa hora o menino com fogo na cabeça pareceu se irritar seriamente. A mão saiu do bolso e apontou para mim. Ainda que seu rosto estivesse apontado à frente, seu dedo indicador estava virado a mim. Sua mão era feita de metal. Não tinha um pedaço de carne sequer ali.

Eu não sabia que existiam tantos palavrões no mundo, e aquele garoto acabou me ensinando todos eles. O cabeçudo pôs as mãos um pouco pra cima, em uma óbvia tentativa falha de acalmar o foguinho. A cada palavrão, suas chamas se intensificavam.

Por algum motivo, meu coração não batia rapidamente mais. Meus olhos se assustaram com o que viram, por não fazer parte do habitual... mas não existia um medo irracional. O cabeçudo acompanhou a mão de metal. Seus olhos apontaram para mim. Eram extremamente grandes, parecia ter vindo de algum anime. E assim como desenho animado, surgiu um borrão roxo na posição do nariz – que também não existia. Ignorando os xingamentos, se moveu em minha direção.

Seu corpo estava agachado próximo a mim. Parecia totalmente concentrado em meu rosto. Meu pescoço permaneceu levemente virado em sua direção.

- Cara, agora sim estamos com problemas. – O outro garoto se aproximou de nós, com as mãos nos bolsos.

O que brilhava em seu nariz, que eu torcia para ser meleca, na verdade era algum tipo de magma colorido. Caia pouco e ficava ali, entre a boca e nariz. Seu olho direito era, assim como seu braço, de metal. Um azul sem vida e metalizado. Do início da testa até o começo da bochecha uma cicatriz profunda rasgava sua pele. O que quer que tenha feito tal machucado, levou seu olho direito.

- O que são vocês? – Indaguei, finalmente.

O cabeçudo olhou para o foguinho, e ele assentiu. As chamas abaixaram totalmente, ficando praticamente invisíveis em seu cabelo.

- Nós somos humanos, assim como você

Um ser que conversa por legenda e o outro que possui fogo no cabelo e no nariz, dizendo ser a mesma coisa que eu. Isso soava como uma piada para mim.

- Olha, garota – o foguinho puxou o ombro do cabeçudo, derrubando-o no chão

Na escuridão da floresta, atrás dos dois, uma fraca luz se ergueu. Parecia se movimentar em nossa direção lentamente. Poderia facilmente ser outra criatura bizarra. Os dois olharam e pareceram tão confusos quanto eu, mas logo o foguinho pareceu entender.

- Porra, eles chegaram rápido – em um simples movimento, levantou o cabeçudo – Star, mantenha-os ocupado. Vou arrumar a besteira que você fez.

O cabeçudo assentiu e pareceu se despedir com um olhar, balançando levemente a cabeça em um cumprimento. Correu em direção à luz e sumiu em pouco tempo. E então a luz se apagou, nada se via adiante. 

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