Gula

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Sem entender aquela fala, arqueei as sobrancelhas e deixei os lábios abertos num '0' perfeito, as engrenagens do meu cérebro trabalhando podiam ser ouvidas exteriormente tamanho esforço para compreensão.

—Eu sou Deus!- repetiu aproximando-se e mostrando a palma de suas mãos. -—Criei tudo a partir do nada e onde havia um nada agora há tudo.- a sua frase deixou-me confuso mais uma vez.

—Como assim você é Deus? Deus é um homem!- realcei exaltado pois foi isso que sempre ouvi durante toda a minha vida.

A mulher negou ainda de mãos estendidas. Da palma direita da sua mão cresceu uma rosa branca. A palma esquerda foi pousada sobre a rosa e segundos depois, após retirá-la para mostrar-me o interior, uma pomba branca voou para longe cantarolando e se juntando às demais.

—Eu monto e desmonto o que quero quando quero.- quando novamente o seu olhar encontrou o meu, os cabelos vermelhos estavam grisalhos, curtos e o olhar cansado do homem marreco de mãos calejadas e corpo miúdo não deixava margem para dúvidas, não era outra pessoa ali na minha frente, ainda era ela. —Eu sou tudo e estou em todas as coisas, uma vez que tudo partiu de mim!- declarou se transformando agora em um tigre branco e voltando à forma de uma mulher negra de cabelos cacheados e sorriso simpático.

Arregalei os olhos rindo nervosamente em seguida. —C-como nasceu o mundo?- questionei fascinado pelo conhecimento. Queria saber mais, entender e conhecer a verdade. Os meus olhinhos brilhavam em fascínio e os dela não pareciam diferentes enquanto contava como tudo começou.

—Eu sentia-me sozinha na imensidão do nada e do nada criei os anjos e os demónios para que houvesse equilíbrio na Terra. Construí primeiro o mar, depois a terra e finalmente a natureza. Formei leis como a gravidade, a genética e a linha do tempo para que tudo se mantivesse em ordem. Criei o homem para que desfrutasse do mundo, um rascunho apenas do ser mais maravilhoso que viria a criar seguidamente, a mulher. E a ela, à minha obra prima, lhe dei o puder mais puro e amor mais sincero, o da criação. 

As suas palavras eram ditas com tanto orgulho e amor que aqueciam o meu peito com fervor. —Adão e Eva?- arrisquei dizer em tom de pergunta. A mulher em minha frente concordou com honradez. Lambeu os lábios e continuou gesticulando ao falar:

—À minha semelhança ainda que de forma primitiva, a obra prima poderia gerar uma nova vida, um novo ser semelhante a si mesmo, um bebé, criado através do amor entre dois iguais, o homem e a mulher.

Em frente à fonte um banquete se formava. Centenas de cabeças sentadas em fila devorando pratos infinitos de comida que nunca acabavam. Quanto mais eles comiam, mais comida aparecia nunca sendo esgotada. E eles mastigavam com vontade nunca se cansando, nunca satisfeitos e cheios de apetite.

—Eu queria que prevalecesse neles o amor ao próximo tal como em mim prevalece o amor pela minha criação e para isso deveria existir o equilíbrio. O equilíbrio está nas diferenças e a beleza nas pequenas coisas. Para que houvesse um verdadeiro amor incondicional, deveriam existir seres fora dos padrões que coloquei inicialmente e a sua aceitação pelos demais.

—E-está falando de...- não terminei por parecer-me surreal tal pensamento, de tal forma que fez todos os pelinhos do meu corpo arrepiarem-se.

—Eu aceito todos como são independentemente de qualquer coisa e os amo igualmente. Para mim não existe raça, género ou sexo predileto, essas coisas sequer existem, visto que a alma é uma substância não física e é ela que compõe o ser. Protegida por uma casca de tecidos e carnes que apodrecerão inevitavelmente libertando a luz divina. Todos são iguais perante mim e todos merecem o meu amor incondicional.

Quando dei por mim já estávamos praticamente no centro de todo o manto formado por pessoas onde o único afazer era triturar alimentos com os dentes e engolir com lamúrias de prazer.

—Esta é a casa da gula!- explicou levando-me junto para dentro daquele terreno vasto, coberto de cheiros apetitosos de dar água na boca. —Poderá comer tudo o que quiser, quando quiser e na quantidade que quiser. O alimento é infinito. A comida nas outras casas é palha comparada à daqui. Se desejar permanecer aqui é claro!

—Se eu desejar permanecer?

—Eu dei aos Homens livre arbítrio tanto na vida quanto na terra do pecado!- respondeu entrando no caminho que seguia até onde as nossas vistas podiam alcançar.

Todos se levantaram de onde estavam e gritaram agradecimentos profundos de fascínio e lealdade. Uns oravam, outros choravam de alegria e ainda outros ajoelhados no chão liso gratulavam a mulher em murmúrios baixos e mesmo assim sentidos pela alma vibrante na direção do divino. —Existem sete casas, uma para cada pecado. Você viverá por toda a eternidade com o seu maior pecado, Jungkook! A casa escolher-te-á!

Aquela frase não me assustou de maneira alguma. A casa da gula não parecia algo horrível, pelo contrário, tentador, mas não o suficientemente para prender-me pela eternidade àquele lugar de primeira.

Continuei passeando por aquelas bandas vislumbrado com os pratos merecedores de grandes prémios, vinhos caros dispostos em filas até onde fosse possível visualizar. Comida cara de grande qualidade feita de todas as formas possíveis em receitas incríveis, quase extintas. —Oi!- cumprimentei um garoto loiro de lábios carnudos e feições bonitas. Ele largou o hambúrguer em cima da mesa e sorriu largo para mim, um dos dentes da frente tortinho, fofo. —Porque está aqui? O que sucede neste sítio?

Queria saber o que acontecia na casa da gula para poder decidir-me entre ficar ou avançar para a próxima casa. —Eu gosto de comer!- riu mostrando o alimento regenerando-se ficando inteiro mais uma vez, intocado. —Aqui nós comemos até nos fartar para em seguida voltar-mos a comer mais ainda. Nunca estamos satisfeitos por mais que comamos embora nunca sintamos fome. É um ciclo vicioso. -explicou voltando a saborear o seu lanche.

—Obrigado...

—Park Jimin!- sorriu com as bochechas cobertas de migalhas e molho.

—Obrigado, Jimin!

Sacudi a cabeça afirmando que queria conhecer a próxima casa. Deus sorriu como se já soubesse da minha decisão e voltou a caminhar ao meu lado pela estrada de terra batida.

A Terra Do PecadoOnde histórias criam vida. Descubra agora