Capítulo 9

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"But when she loves me, I feel like I'm floating

When she calls me pretty, I feel like somebody

Even when we fade eventually, I'm nothing

You will always be my favorite form of loving"


   Quando estou na última estrofe, a vejo. E ela está linda como nunca. Ela está usando um vestido  amarelo, que costumava ser meu até ela roubar, justo até a cintura e soltinho na parte de baixo. Consigo ver o nó do biquíni no seu pescoço e percebo o cabelo. Suponho que acabou de voltar do mar.
   Estou sentada perto da fogueira que alguns dos meus colegas montaram porque queríamos fazer um luau. Sou a única pessoa da minha sala que sabe tocar violão, e por isso Cris, que estava sentade do meu lado, sacode meu ombro.

   - Ei! Tá distraída? – Elu diz rindo. – Toca só mais uma pra gente. Não podemos perder a última oportunidade de assistir um show seu!

   Eu rio e continuo tocando mais algumas músicas, mas a verdade é que minha mente estava muito longe dali. Eu estava decidida a me resolver com ela ainda hoje mas até então não havíamos sequer trocado uma palavra e isso me matava por dentro.
   Não vi Cecília a noite inteira e concluí que ela estava me evitando. No início da manhã seguinte, a maioria de nós estava dormindo e alguns sobreviventes estavam na sala assistindo televisão. Quando cansei de assistir seja lá que filme era aquele, peguei meu violão e resolvi ir à beira do mar. E finalmente a encontrei.
   Ela estava de frente para a água. Seus cabelos balançavam com o vento e ela não se importava em arrumá-los. Aquele era o momento dela.

   - Oi.

   Cecília diz quando eu estava prestes a sair dali. Ela bate a mão na areia e demoro para perceber que me chamava para sentar ao seu lado. Ando devagar até ela, deixo o violão do meu lado e me sento abraçando os joelhos. Ela continua serena encarando a vista enquanto eu fito seu rosto porque (Deus!) ela é a melhor vista e eu sei que isso é muito brega.
   Percebo que estou encarando muito e decido tentar uma conversa.

   - Como soube que era eu?

   - Sua sombra. – Ela olha pra mim. – Eu conheço sua sombra.

   Claro que conhece.

   - Escuta...

   - Posso te fazer uma pergunta? – Ela me corta.

   Assinto e não sei o que esperar. Até que vejo ela sorrir e sei que ela vai brincar comigo.

   - Olha, você que é a bi aqui. A bissexual, a bilíngue. Mas é impressão minha ou você cantou "Cloud 9" usando she?

   - Cantei. – Eu rio.

   - Brigou com o Mateus? Vocês mal se falaram e você cantou usando pronomes femininos. – Ela dá ênfase na última parte.

   - Isso não quer dizer absolutamente nada. – Eu digo firme mas deixo escapar um sorriso.

   - Você que diz que é mais legal cantar com os pronomes de quem você está interessada. – Indaga de forma irônica.

   - Eu e o Mateus terminamos. – Admito sem olhar em seus olhos.

   - O que? Quando?

   - No dia da nossa briga.

   - Ah... – Ela volta a encarar o mar quando menciono nossa briga. – Durou o que? Uma semana?

   - Nem sei. – Dou risada e ficamos em silêncio por longos minutos.

   Pego meu violão e começo a dedilhar qualquer coisa. De repente, percebo que estou tocando os acordes de "Cecília" de Anavitória, que havia passado a semana praticando. Murmuro no ritmo da letra e ela se deita na areia de barriga para cima com as mãos apoiando a cabeça. Olhando pro mar, canto baixinho:

"Teu olho despencou de mim
Não reconheço a tua voz
Não sei mais te chamar de amor
Não ouviram falar de nós

A gente se esqueceu, amor
Certeza não existe, não
E a pressa que você deixou
Não vem em minha direção

Parece que o tempo todo
A gente nem percebeu
Que aqui não dava pé, não
Que tua amarra no meu peito não se deu

Te vi escapar das minhas mãos
Eu te busquei, mas
Não vi teu rosto não
Eu te busquei, mas
Não vi teu rosto, não

Ausência quer me sufocar
Saudade é privilégio teu
Eu canto pra aliviar
O pranto que ameaça

Difícil é ver que tu não há
Em canto algum eu posso ver
Nem telhado, nem sala de estar
Rodei tudo, não achei você

Parece que o tempo todo
A gente nem percebeu
Que aqui não dava pé, não
Que tua amarra no meu peito não se deu

Te vi escapar das minhas mãos
Eu te busquei, mas
Não vi teu rosto não
Eu te busquei, mas
Não vi teu rosto, não"

   Quando termino, abro os olhos e então percebo que estava com os olhos fechados. E chorando.
   Percebo também que não estava cantando sozinha.
   Ainda estávamos na mesma harmonia.

*****

   Me deito ao seu lado sem me importar se a areia sujaria meus cabelos. Relembro tudo o que nos levou até ali. O dia que ela se mudou para a casa ao lado. Nossa infância juntas. A paixão dela criança por mim. Nossas danças na chuva. Nossas aventuras até a estufa. A minha paixão secreta por ela. Meu namoro com o Mateus. Nossa briga pela Tati. Nosso orgulho.

   - Desculpa. – Penso em voz alta.

   - Desculpa. – Ela fica de frente para mim e eu também me viro.

   Ficamos ali, olhando nos olhos uma da outra, em silêncio. Resolvo segurar sua mão e ela deixa. Ela começa a fazer pequenos círculos com o dedão como se estivesse massageando a minha mão. Devagar, aproximo mais meu rosto e sinto a ponta do seu nariz. Fecho os olhos e beijo seus lábios. Mas ela se afasta.

   - Eu... Desculpa... Eu e a Tati... A gente meio que tá ficando sério. – Continuámos deitadas mas percebo que ela não consegue mais olhar nos meus olhos. – Desculpa por não ter falado. Eu não esperava que você fosse me beijar.

   - Tá tudo bem. – Sento e fico de costas para ela.

   - Tem certeza? – Ela toca o meu ombro e eu, involuntariamente, me encolho.

   Ela tenta não fazer barulho, mas escuto ela se levantar e se retirar, me deixando completamente sozinha. Só com o mar, meu violão e o aperto no coração.
   Senti um pingo de água cair no meu rosto, mas quando olhei pro céu, não estava chovendo.

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