Capítulo 13

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   Não consigo encarar o enterro. Não consigo fingir que tá tudo bem. Não consigo olhar na cara de todas aquelas pessoas que me odeiam por eu amar quem eu amo. As mesmas pessoas que dizem que amam e vão sentir falta da minha vó mas, se soubessem a verdade, destilariam ódio e não derramariam uma lágrima sequer. Odeio elas. Odeio tudo isso.
   Quando chegamos do hospital, contei à minha mãe o segredo da minha avó e ela já sabia. Sempre soube. Eu era a única que não sabia e eu não conseguia entender por quê. Mas minha mãe não sabia que era adotada, assim como eu. Percebo que, para uma família que se diz tão mente aberta, a nossa possuí muitos segredos. Segredos que eu nunca vou entender por que eram segredos. Mas essa é a menor das minhas preocupações.
   Vejo Cecília a alguns metros de mim e ela me dá um sorriso triste. Não consigo retribuir.

   - Thalita! Como é que você tá, minha filha? – Alguém, que eu nunca vi na minha vida mas provavelmente me segurou quando eu era bebê, aperta o meu ombro direito.

   - Oi, dona... – Tento sorrir e parecer simpática, mas não consigo. Sinto tudo ficar turvo. Minhas pernas estão moles e meu ombro direito parece pesado. - Com licença.

   Tento me desvencilhar e fugir, mas as pessoas continuam em cima de mim. Me fazem perguntas e me aconselham. Fazem tudo! Mas não me dão paz.
   Consigo chegar ao carro do meu pai e pego as chaves que estavam no meu bolso, já por prevenção pra caso eu precisasse sair mais cedo. Coloco as aulas de direção que meus pais me dão desde o meu aniversário de 16 anos em prática e dirijo até a casa da minha avó. Ou onde costumava ser a casa da minha avó. Não sei o que vai acontecer agora.
   Percebo que não tenho como entrar na casa e a verdade é que nem sei se quero. Dou a volta e encontro as bicicletas que eu e Cecília costumávamos usar quando éramos menores.
   Analiso-as e vejo que ainda estão novinhas. Como se tivessem sido usadas recentemente. E provavelmente foram. Sempre havia crianças ao redor da minha avó. Ela tinha sangue doce pra criança.
   Pego a bicicleta que é a amarela e deixo a outra, que é meio rosa-choque, no mesmo lugar. Pedalo até a estufa que, por muito tempo, serviu como um lugar seguro pra mim. Ou talvez o meu lugar seguro fosse uma pessoa, mas ela não tá mais aqui.
   Chego ao local pouco antes de começar a chover e por pouco não me molho. Mas eu tô muito triste pra me importar. Pra mim, tá chovendo desde que saí daquele quarto no hospital.
   Vou em direção ao meu lugar de costume. Quando estou próxima ao baú, percebo como está acabado. Cheio de poeira, sem cor e com o fundo descolando. Decido limpá-lo.
   Tiro o blazer que estava usando por cima de uma camiseta branca e dou batidinhas no baú pra poder tirar um pouco da sujeira. Quando vou ver o que posso fazer pra consertar o fundo, percebo que há algo escondido ali. Termino de descolar o que faltava e encontro alguns papéis velhos sujos. Sei que os papéis são cartas mas estão praticamente ilegíveis. As marcas do tempo apagaram palavras que deveriam ter sido eternas.
   Tomo um susto quando escuto um barulho de algo se quebrando e olho pro vaso de planta que Cecília derrubou no chão.

   - Ops! – É tudo o que ela diz antes de se aproximar calmamente e sentar ao meu lado. – O que é isso?

   - Acho que são cartas. Alguém escondia cartas nesse baú.

   - A gente sempre pensou que ele estivesse vazio.

   - Acho que nunca esteve.

   - Nunca esteve. – Ela só afirma e pega a minha mão. – É engraçado. A gente sempre se revoltou com o fato de nunca ter nada nesse baú, mas nunca colocamos nada.

   - Poderíamos ter colocado.

   - Poderíamos ter colocado. – Pondera. – O que você colocaria?

   - Não sei. Acho que não tem nada material que possui tanto significado pra mim. E você?

   Ela observa as cartas por muito tempo e eu só a observo. Tento lê-la, mas é quase tão impossível quanto as cartas.

   - Também não sei. Faz sentido, sabe? Nada material pode ser tão significativo como as palavras são. Por isso essas cartas são tão significativas.

   - Pena que eu não consigo ler nada.

   - Eu posso te ajudar, sabe?

   - A gente continua falando das cartas?

   Um silêncio paira mas eu sei a resposta. Não estamos falando da carta. Ela quer dizer que pode me ajudar a entender. A me entender. Ela pode me ajudar a escrever uma carta.
   Sem pensar muito, me inclino e a beijo. Seus lábios cedem ao meu toque e eu sinto sua língua deslizar para a minha boca. Ela se entrega à mim ao mesmo tempo em que me entrego à ela. Coloco as mãos na sua nuca e meus dedos se molham por conta do seu cabelo. Ela encarou a chuva por mim. E agora está na chuva comigo, mesmo que a gente não esteja se molhando agora.
   Não sei por quanto tempo nos beijamos, mas estranho quando ela se afasta.

   - Thali, não me leva a mal. Só não quero que você pense que eu tô te usando e talvez você só esteja confusa por tudo o que...

   Não fico pra ouvir o resto. Me levanto e vou pra chuva sozinha. A chuva real.
   Encontro minha bicicleta amarela e vejo a rosa parada logo ao lado dela. Subo e estou prestes a pedalar quando escuto Cecília gritar.

   - Célia. – Ela está na chuva, com a respiração entrecortada e balançando um papel, que está em sua mão. – Uma. das. cartas. tem. o. nome. Célia.

   Célia. Uma das cartas tem o nome Célia.

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