Recém-chegada

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A liberdade dos seres vivos de fazer suas próprias escolhas é limitadapor outros seres.

O silêncio da noite poderia ser mantido em Clerofa, se não fossepela embarcação lotada que acabara de chegar na costa de Lisar. Oalgoz Henen estava ciente da informação e não se conteve em eliminartodos aqueles que ousaram sair do barco.

Ou quase todos.

Rade, a pequena fada de pelos e asas esmeralda, teve sorte de nãoser atingida pelo fogo, mas isso significava agora atravessar a florestadensa e escura na tentativa de despistar o tirano que a perseguia. Seudesespero era tamanho, já que não havia tempo para derramar lágrimaspor quem fora obrigado a deixar para trás na praia. Ninguém esperavapor uma recepção calorosa assim, somente um novo lar. As asas batiamfervorosas, e continuava voando pelo mato desconhecido enquantomantinha o equilíbrio para não tropeçar.

Atraído pela única luz em meio à escuridão, Rade parou diante deduas construções. Olhou para cada uma delas e soube em qual deveria adentrar quando notou a reação e os gritos dos seres humanos àfrente. Obrigado a entrar pelos fundos da edificação, evidenciando ogalpão abandonado com uma diversidade de maquinário acumulandopoeira em meio às palhas e chapas de metal, Rade encolheu as asas e seescondeu. Ficou em silêncio e abraçou a si mesmo, enquanto esperavarever Cile. Esperava que estivesse viva, e tentava parar com a tremedeirapara pensar em alguma forma de voltar até a embarcação.

A fada não ouvia mais gritos vindos do lado de fora havia algum tempo, e se perguntava se outros teriam conseguido escapar da nova desgraça que os atingira. Sobreviveram às tempestades em alto mar, aos dias de sol escaldante, à falta de comida a bordo e às doenças contagiosas para morrerem na praia? E a promessa de uma vida de fartura, segurança e felicidade?

Um baque abriu a porta principal do edifício, reprimindo a fada.

— Fadinha exilada, onde está você? — provocou Henen, quase como se cantasse para uma criança. — Está escurinho aqui. Vou acender as luzes para te ver melhor.

O algoz pressionou um gatilho colado às suas luvas, fazendo com que fogo fosse disparado em direção ao velho teto de madeira e palha seca, iniciando um incêndio.

A iluminação do fogo permitiu que o garoto fada vislumbrasse pelo canto dos olhos o homem loiro de cabelos espetados, trajando um uni- forme branco com diversas manchas de sangue. Sorria mais a cada passo lento dentro do galpão, e as mãos flamejantes tocavam sem pressa os lugares que observava minuciosamente com seus olhos cor de mel.

— Quanto de calor precisa para os insetos saírem do meio da lenha?

Henen parou de andar um instante e ajeitou o cilindro metálico, amarrado às costas, da qual saía o fio conectado ao gatilho de fogo nas mãos. O fogo se espalhou enquanto Henen alcançava o centro da instalação e observava cada canto.

O calor e o reflexo da luz avermelhavam as cores da fada, que não via alternativa além de sair de seu esconderijo atrás das colunas largas e tortas de metal. A esperança de uma nova vida com sua amada Cile se encerrara. As memórias agora transformavam sua tristeza em raiva, e a ideia de vingar a amada e seus companheiros de viagem talvez fosse a única saída decente em vez de apenas agonizar no fogo do inimigo. Entretanto, antes que pudesse se decidir, encostou e bateu o pé na placa de metal devido ao calor.

Henen apontou o gatilho em direção ao som quando, de repente, ouviu outro ruído seguido de uma voz feminina acima:

— Pare agora mesmo, maníaco.

Olexa, com seus cabelos cor de fogo, posicionava-se em pé, em cima do hangar, encarando o algoz com um olhar severo.

— Veja que bela companhia temos aqui. Minhas ordens não são para matar mercenários como você hoje, mas... — Henen se calou ao perceber a fada se aproveitando do breve diálogo para saltar fora de seu esconderijo e correr.

No momento que o algoz redirecionou seu gatilho, a ruiva exalou um brilho azul junto de um pequeno gesto de mãos, pegando impulso e saltando do hangar para cair chutando o ombro de Henen.

— Todas as raças têm o direito de viver aqui!

O homem foi arremessado no chão, mas conseguiu dar uma vol- ta com o corpo para cair de lado, apontando o gatilho para a garota enquanto se reerguia.

— Dane-se a fada. Morra!

Uma torrente de chamas foi disparada na direção da moça.

Por um instante, tudo pareceu mais lento. Da velocidade da fala à combustão do gás em fogo, que saía como se fosse da mão do homem, ganhando tempo e tranquilidade para a garota, brilhando em tons azuis, desviar. O fogo passou reto até as paredes secas e empoeiradas do galpão, garantindo uma explosão e terminando de causar o incêndio generalizado por toda estrutura.

Olexa voltou a olhar para a frente e socou o nariz de Henen antes de ouvir um ranger acima. O hangar estava cedendo às chamas e prestes a cair, podendo ocasionar um incêndio. Ela não conseguiria escapar se continuasse ali por mais tempo. Com fé de que seu trabalho estaria concluído com a queda, concentrou-se em correr para a saída do galpão velho, deixando o algoz para trás.

Do lado de fora, conseguiu facilmente identificar os rastros deixa- dos pela fada, que correra em disparada para o interior do país de Lisar através da plantação. Olexa poderia tê-la auxiliado a se encontrar, mas compreendia ser natural os recém-chegados se assustarem com todos. Assistiu o telhado do galpão desabar, ignorando as pessoas da casa, olhando e apontando na direção dela. Os olhos estavam ocupados com o belo espetáculo de luzes na noite pouco estrelada. Quando a última viga caiu, a garota deu meia-volta para partir na direção da fada.

Power Heart - Livro 1: O Recomeço da Alma [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora