Sobre tendências a fugir

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Eu não sei bem como descrever a relação que eu e Will passamos a ter desde aquele dia.

Continuamos com as alfinetadas frequentes, apelidos não muito carinhosos e trocas intensas de olhares. (Interprete o último como achar melhor.)

     No entanto ... não sei. Tudo ficou diferente, mas ao mesmo tempo igual.

     Ele continuou sendo como uma babá nerd irritante sem grande senso de moda e de língua afiada. Mas eu passei a, sei lá, interpretar isso de outra forma?

Comecei a enxergar zelo em tudo aquilo.

Ia além de "estou cuidando de você porque é minha obrigação". Era mais como "agora que eu te vi, eu me importo e me comprometo a cuidar de você".

Não admiti isso ao Senhor Irritante. Ele nunca deixaria-me em paz se o fizesse.

[— Parece que alguém ' derretendo esse coração de gelo~! — cantarolou desde o outro lado do celular.]

Grunhi audivelmente, fazendo-o rir de leve.

— Eu só disse que talvez julguei ele meio mal. Só isso, Jason!

[— O Grande Nido di Angelo admitindo estar guardando rancor à toa? Vai chover!]

— Vou desligar a porra dessa chamada. — ameacei, encarando o loiro com sangue nos olhos.

[— Ok, ok. — levantou as mãos em sinal de rendição, o sorriso esperto ainda presente — Não ' mais aqui quem falou. Bom, como 'tão o Percy e a Annie? E a Hazel?]

— As Almas Gêmeas do Século continuam me dando diabetes e cáries toda vez que olho p'ra elas. A Hazel ' crescendo rápido demais. Ela encontrou uma alma gêmea dela num coleguinha chamado Frank e ele é uma graça. Eles vem desenhar juntos aqui em casa sempre. — contei, tentando entender o que meu professor de Filosofia queria naquela redação do capeta.

[— Amargurado de novo, di Angelo?]

Segurei um grito na garganta, socando a mesa. Lágrimas acumularam-se em meus malditos olhos cor-de-terra.

— Por que caralhos essa merda de almas gêmeas sempre voltam p'ra me assombrar!?

[— ... Talvez porque ' sempre foge ao invés de resolver o problema? — chutou, o tom calmo e preocupado.]

Apertei os lábios, esfregando o braço nos olhos para seca-los. Respirei fundo.

O que havia para enfrentar? Um antigo crush em alguém que jamais retribuiria meus sentimentos? Uma irmã morta? Anos de solidão?

— Como a Reyna 'tá? — mudei de assunto, a voz trêmula — Soube que ela já subiu de posição.

Jason percebeu que eu estava fugindo assunto. De novo. No entanto, apenas seguiu o meu "joguinho" como o amigo compreensivo de merda que ele era.

...

Nossa ligação durou até às duas da madrugada. Eu fiquei até às quatro terminando a redação para Filosofia e ainda não tinha gostado de como ela ficou. Literalmente desmaiei na cama.

Acordei três horas depois com uma dor de cabeça latente e um mau humor do cão. Tomei uma ducha trincando de fria e corri buscar meu cappuccino com canela e creme. Peguei uma fila quilométrica.

Cheguei em cima da hora para pegar o trem com Solace, que arregalou os olhos ao ver o meu estado.

— Foi atropelado no caminho p'ra cá?

— Queria, mas não. — rebati, tomando um longo gole da minha bebida, que desceu queimando pela garganta — Virei a madrugada terminando uma redação. O Augusto ainda me paga!

— Calma. Só mais um ano e meio e a tua faculdade acaba. — sua face tornou-se sombria — Eu ainda tenho mais uns quatro anos abrindo cadáveres pela frente ...

— Que divertido. — brinquei, tomando mais um gole — Se te serve de consolo, pretendo fazer mestrado logo depois da faculdade. Vamos terminar mais ou menos juntos nesse caso.

— Oh, então o Lorde das Trevas vai querer me fazer companhia? — sorriu-me ladino.

— Eu não. Mas a tua vidinha de estudante de medicina seria um tédio sem mim.

Hmmm, é. Talvez. — concedeu, entrando no trem que acabara de chegar.

     Sentamos um do lado do outro como de costume. E, para a minha surpresa, ele puxou a minha cabeça para deita-la em seu ombro.

— Tira um cochilo até chegarmos na faculdade. Você 'tá acabado.

— ' achando que eu sou a sua namoradinha!? — alfinetei, ignorando a ardência em meu rosto e meu coração titubeando.

— Se isso significa você estando melhor p'ra aula, sim. — tomou meu copo de minha mão — Vai. Dorme, Lorde das Trevas.

     Minhas pálpebras estavam tão pesadas que só consegui dizer:

— Bebe todo o meu cappuccino e eu te castro.

     Consegui ouvir sua risada divertida antes que eu apagasse.

Não tocamos no assunto de como eu dormi encostado em seu ombro durante todo o nosso trajeto no trem. Ganhei nota máxima naquela redação idiota.

Primeira escolha [Solangelo]Onde histórias criam vida. Descubra agora