Sobre conversas difíceis em dias difíceis

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     Naquele mesmo dia, quando eu e Will terminamos de almoçar, houve um acordo tácito de tirar um belo cochilo.

     Nós simplesmente colocamos um alarme do celular no volume máximo e nos debruçamos sobre a mesa do refeitório, tentando achar uma posição confortável mesmo estando sentados.

     Aqueles devem ter sido os três minutos de descanso mais bem-aproveitados da minha existência. No entanto, a trilha sonora do Império de Star Wars, que não era do alarme, me acordou de supetão.

     Sendo aquele que mais dormiu na noite passada, minha visão focou primeiro. Fiz careta para o aparelho que recebia a chamada.

— É o seu pai ...?

— Ha, sei ... — desdenhou, a voz arrastada de sono — Claro.

— É sério, Solace. É o seu pai. A não ser que você tenha um Suggar Daddy e não me informou de antemão.

     Seu rosto perdeu a cor.

     A música parou quando a chamada caiu. Três segundos depois, recomeçou, junto da foto de um homem loiro sem camisa, de sunga e óculos escúros caríssimos na praia tomando conta da tela levemente trincada.

     Ele engoliu em seco.

— 'Tá. Ok. Hm, eu ... eu já volto. Pode voltar a dormir.

     Eu não consegui fazer nada além de observá-lo se afastar relativamente rápido com o telefone no ouvido. Aquela reação dele fez meu estômago embrulhar.

     Nossa conversa sobre ser o irmão do meio voltou à minha mente. Will ter uma relação mais complicada com o pai do que admitiu para mim não me pareceu uma ideia errônea; não quando parece ser tratado como a cópia barata do irmão mais velho.

     Conversar com seu pai tendo tal premissa, depois de um dia de prova complicado como esse e com todo o sono e cansaço que sentia ...

     De repente, eu perdi o sono.

     Levantei da forma menos afobada que pude, indo na mesma direção dele. Quando saí da vista de todos, passei a correr.

     Ele estava num canto afastado de um corredor. Sua perna tremia como uma britadeira, quase furando o chão. Sua mão livre devia estar na ponte do nariz, já que não podia cruzar os braços de raiva como sempre cruza.

— (...) Eu já disse que entendi. — quase rosnou — O Senhor mesmo já estudou a matéria errada p'ra prova dezenas de vezes. Comigo foi uma vez!

     Fiquei parado, imóvel atrás dele.

     Eu sabia que escutar os outros assim é, tipo, muito antiético, mas eu não consegui ir embora e muito menos chamar a atenção do maior.

— Pai, o Asclépio não tem nada a ver com isso. Ele nunca ter feito uma burrada dessas não devia me desmerecer! Todo maldito estudante faz burrada.

     Engoli com dificuldade. Mandei meu corpo agir de alguma forma, mas ele se fez de desentendido e continuou estático no lugar.

— Me desculpe, mas se fizessemos a droga de uma escala de comparação para a competência de um médico baseado em como ele passou pela a faculdade, o Senhor ia estar de exemplo do nível mais baixo e desastroso, e sabe disso. Não entendo onde quer chegar com esse sermão. Eu já lidei com as consequências da minha burrada!

     Nunca vi Will soar ... machucado. Não desse jeito, nessa proporção. Deu uma sensação estranha, mas nada legal.

— Quer saber? Esquece, Pai. Me esqueça, e esqueça que eu to fazendo medicina. O Senhor é muito bom nisso. Vai facilitar a minha vida. Bença e tchau.

     Continuei bem congelado no lugar mesmo quando o loiro virou-se para voltar.

     Ele já estava com uma aparência preocupante antes, sem realmente dormir por quase cinquenta horas. Agora, ele parecia prestes a desabar, com seus olhos cor-do-céu cheios de lágrimas e lábio tremendo. Claramente não queria que eu o pegasse desprevinido assim.

     Eu quis fugir dele. Não consegui mover um músculo sequer.

— Desculpa. — foi ele que falou primeiro, a voz embargada e baixa.

— Desculpa o quê? Que o seu pai é um merda com você? Por que 'cê precisaria se desculpar por uma merda dessas? — não consegui segurar a língua.

     Quando ele piscou, as primeiras lágrimas caíram. Riu um dos risos mais doídos e tristes que eu já ouvi, e o som pareceu marcar sua presença em minha cabeça como o ferro quente marca o gado.

— Eu- eu não sei? Só- desculpa? — gargalhou, engasgando com o próprio choro — Eu- sei lá, eu- haha!

     Ele tentou secar o rosto com a mão livre, mas seu choro não parava ou diminuía de volume. Sua risada ficava cada vez mais alta, engasgada e angustiada.

     Quando dei por mim, eu tinha uma mão empurrando sua cabeça para o meu ombro e outra puxando seu tronco para perto do meu.

     Como eu cheguei até ali? Não faço ideia. De onde tirei aquela ação? Também não sei. Eu ia me arrepender?

     ... Sendo sincero, provavelmente não.

    Eu ainda acho toda a história de almas gêmeas uma verdadeira merda. Ser predestinado a amar ou sequer se dar bem com alguém é um conceito que me enoja.

     Mas foi por eu conseguir enxergar esse céu típico de dias ensolarados de verão preso em dois orbes que eu ganhei um amigo.

     Antes, eu tinha Jason, Reyna, Percy e Anabeth. Eu sei que eles se importam, e sei que posso contar com eles, mas não podem ficar. Eles não podem mudar suas vidas para ficarem de minhas babás. Eles não entendem como é ser o filho do meio esquisito.

      O Will podia. O Will entendia. O Will ficou mesmo quando eu mesmo não quis ficar comigo mesmo.

     Não que eu vá admitir tudo isso em voz alta algum dia – ele jamais me deixaria em paz depois dessa. Esse será mais um de meus segredos.

     Naquele momento, vendo-o tão destruído, aproveitei que podia culpar o sono por fazer coisas estranhas e sem sentido e acolhi ao seu choro. Porque é o que amigos fazem. Porque eu entendia parcialmente sua dor.

     Porque, eu percebi então, eu me importava de verdade com Will Solace, mesmo que só um pouquinho.

     Ele demorou três segundos para assimilar o que eu fiz. Quando percebeu que era real, passou seus braços por mim e agarrou-se às costas do meu moletom como se sua vida dependesse disso. Seu corpo todo tremia com seus soluços.

     Iniciei um cafuné nele. Ele se aconchegou contra meu pescoço, molhando-me todo. Puxamos tanto um ao outro para bem pertinho que quase desafiamos a lei de Newton, ocupando o mesmíssimo espaço.

     Há quanto tempo eu não abraçava alguém?

     Há quanto tempo ... foi a última vez que eu deixei que me tocassem?

Primeira escolha [Solangelo]Onde histórias criam vida. Descubra agora