Sobre correr na chuva

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     Will não mencionou aquele dia no geral durante a próxima semana, então eu fingi esquecer que ele aconteceu.

     Logo, depois de mais alguns dias de sofrimento infernal, as provas de fim de semestre acabaram.

     Em condições normais, eu teria matado o último dia de aula antes das férias, mas decidi vir. E, assim, não tem nada a ver com o Will. Juro. Foi algum espírito de responsabilidade possuindo a mim, um milagre da natureza.

     Não tem nada a ver com o fato de que eu provavelmente veria o Will só depois de trinta dias e a imagem dele destruído no Dia-Que-Deve-Ser-Esquecido continuar me assombrando. É coisa da sua cabeça!

     Enfim, foi um dia tedioso. Não houve nenhuma matéria relevante e quase ninguém compareceu. Eu mais bati papo com meu professor de história mundial do que qualquer coisa. (Xingamos a Sérvia de nomes bem feios e criativos, aliás.)

     Quando fui liberado até o próximo semestre, procurei Will para pegarmos o trem de volta juntos como de costume.

     Ele estava no refeitório quase deserto. De costas para mim, não consegui ver sua expressão, mas tinha o agarre firme num montinho de folhas de papel. Engoli em seco ao me aproximar.

— Eu não sei se você passou ou não ou qual a caralha dessa prova na sua mão, mas você continua sendo o maior nerd irritante de medicina que eu conheço independentemente dela. — declarei, tomando o assento ao seu lado.

     O loiro pareceu meio surpreso com minha chegada repentina. As olheiras debaixo das orbes cor-de-céu injetadas de vermelho nunca foram tão profundas. Todo o corpo dele revelava o quão acabado estava.

Ah. — soltou, piscando lentamente — Ah. É. Eu passei raspando na prova idiota que eu errei a matéria na hora de estudar.

— ... Isso é uma coisa boa?

     Ele levou um tempo para responder. Sua perna tremia debaixo da mesa, e comprimiu os lábios numa linha fina. Maneou a cabeça, talvez procurando uma forma de explicar o problema.

— ... Quando eu fiz a prova ... eu jurei que soltaria rojões de alegria se conseguisse sequer passar. E eu consegui. — engoliu com dificuldade, encarando a nota em vermelho até quase ficar vesgo — Eu só ... não consigo. Eu devia ter evitado essa merda e ido melhor. Eu- eu não posso ser assim!

     Largou a prova sobre a mesa e passou as mãos pelo rosto com exasperação. Seus ombros tremiam de leve, como quem está segurando o choro.

— Eu tenho que estudar. Eu tenho que aprender. Eu- eu não posso só passar! Que tipo de médico eu- eu vou ser um verdadeiro bosta! A vida dos meus futuros pacientes depende-

Will. — inclinei-me para perto dele, mais perto do que nunca — Você não é médico ainda. Você ainda tem anos de estudo pela frente, e 'tá sempre se esforçando ao máximo p'ra ser bom no que faz. Uma nota ruim em um exame não te torna um profissional ruim.

— Mas e se eu não souber da matéria dessa prova na hora de atender alguém e o meu paciente morrer!? — rebateu, a voz quebrada — Vai ser minha culpa. Eu vou ter matado alguém, Nico! Matado!

     Percebi, então, que nada que eu dissesse faria ele se acalmar. Will não estava com a cabeça no lugar. Então, eu apenas fiquei parado ao lado dele enquanto ele chorava.

     Eu jamais imaginei que aquele garoto de língua afiada que conheci no trem pudesse chorar daquela forma. Há alguns meses, eu riria na cara de alguém que me afirmasse que eu daria apoio a Will enquanto ele chorava por sentir-se incompetente.

     Suspirei, abraçando meus joelhos. Levei a mão direita aos cachinhos louros dele e iniciei um cafuné suave. Não me atrevi a olhá-lo.

...

     A faculdade estava deserta quando finalmente alcançamos a saída.

     Uma chuva grossa caía até onde nossa vista alvançava. Não havia ônibus nenhum passando, e o próprio ponto ficava há três quarteirões de onde estávamos.

— ... Eu-

— Se você pedir desculpas por ter chorado, Will, eu vou te bater com um gato morto até ele miar.

— ... Ok. Esquece.

     Por um momento, encaramos a "paisagem" que se formava. Era fim de tarde, e havia pouca luz. O barulho da água colidindo com o asfalto era mais que agradável.

— Eu não trouxe guarda-chuva.

— Nem eu. — franzi a testa para as núvens cinza — E não parece que vai diminuir tão cedo ...

— Eu devia ter escutado a minha mãe e trazido aquela relíquia que ela chama de guarda-chuva.

— "Relíquia"? — repeti, levantando uma sobrancelha.

— Ela usa a mesma sombrinha cor de chiclete que ela ganhou em mil novecentos e bolinha. Aquela desgraça tem mais de trinta anos. — sorriu com deboche — Nada contra o rosa no geral, mas aquela cor parece um chiclete seco grudado no chão do metrô.

— Puta que pariu ... — ri nasalado — Ela te obriga a usar ele?

— É que eu perdi o meu do Star Wars e só sobrou o dela, sabe?

     Não consegui evitar e ri de novo, ação esta que ele copiou.

     Aquela era a primeira vez que ele dava risada desde o início das provas. Senti algo estranho no estômago.

— Bom, parece que vamos ser obrigados a tomar chuva. — suspirou com resignação — Tem medo de água, Lorde das Trevas Trevosas?

     Havia algo de diferente na forma que ele usou o apelido e em como ele sorriu. Não era a mesma coisa da primeira vez.

— Oh, só se for você, Senhor Irritante.

     Chamá-lo assim sempre teve esse gostinho estranho na boca? Sempre me deu vontade de sorrir debochado para ele?

     Guardamos as coisas mais sensíveis à água nos bolsos mais seguros das mochilas e vestimos nossos agasalhos. Will me olhou com as orbes cor-do-céu faíscando em desafio.

— O último a chegar na estação de trem é a mulher do padre!

     E saiu em disparada.

— EI, ISSO É ROUBO! — berrei, correndo atrás dele.

— É ESTRATÉGIA!

— É CORRUPÇÃO!

— É PODER DO PROTAGONISMO!

— ISSO NEM FAZ SENTIDO, WILL!

— EU SEEEEEI! — gargalhou de verdade, quase escorregando no asfalto pelos crocs terem uma aderência péssima.

     Minhas bochechas doíam de tanto sorrir, meu cabelo tapava meus olhos e a água gelada me fazia tremer, mas eu não quis que nada fosse diferente.

     Eu não queria estar em nenhum outro lugar e com nenhuma outra pessoa.

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⏰ Última atualização: Dec 28, 2022 ⏰

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