Sobre ser o irmão do meio

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Eu não sou uma pessoa que fala muito sobre si.

Minha vida não é interessante ao ponto de contar sobre ela a qualquer um que me aparece pela frente. Pouca gente chegou a dar importância a minha própria existência no mundo, verdade seja dita.

Até que o Senhor Irritante caiu de pára-quedas na minha vida ordinária.

Vaiiii! Quem é essa fofura no seu papel de parede do celular? — questionou pela enésima vez em dois minutos.

Eu estava por um fio de socar aquela cara estupida e naturalmente linda.

— Ninguém que vá fazer diferença na sua vida.

— Vai, cara! — pediu, fazendo o olhar de cachorro que caiu da mudança.

Suspirei longa e pesarosamente. Cruzei os braços como pude com meu copo de cappuccino na mão e recostei a cabeça sobre a janela do metrô.

— Minha irmã mais nova, a Hazel.

Eu só respondi para que ele deixasse-me em paz quanto ao assunto. Só isso. É.

Uau. — arregalou um pouco os olhos, surpresa transbordando daquele céu tão azul.

— Somos de mães diferentes. — dei de ombros, referindo-me à diferença gritante entre nossos tons de pele e traços.

— Não. É que parece que a fofura é de família.

Eu literalmente engasguei com minha própria saliva, as bochechas ardendo como o inferno.

Oi!? Eu, fofo!?

— É, ué. — deu de ombros, mas percebi suas orelhas colorindo-se de carmim — Você é muito fofo sem nem perceber!

Pisquei uma, duas, trinta vezes para assimilar o que ouvi.

— Que merda de brincadeira- ...

— A confiança que ' bota em mim é inspiradora, Lorde das Trevas. — comentou, sorrindo sarcástico.

— Eu não sou fofo! — protestei, o dedo em riste.

— Viu. ' fez de novo. — seu sorriso tornou-se alegre — O seu nariz empina quando ' fica bravo.

— ... Você é, literalmente, a primeira pessoa que não tem medo de me ver furioso. — constatei, bebendo mais da minha bebida, decidido a terminar o assunto de vez e poupar o pouco de paciência que me restava — Até a Reyna já se assustou.

— Quem é Reyna? Tua crush? — sua face tornou-se sugestiva.

— Não sei se ficou claro o suficiente, mas eu sou gay. Tipo, muito gay. Além disso, ela é como uma irmã mais velha p'ra mim. — desdenhei — Ela é a mulher mais incrível que eu já conheci.

— Wow! Legal. — soltou com sinceridade — Eu tenho um irmão e uma irmã mais novos, a Kayla e o Austin. A Kayla é um gênio do arco-e-flecha que pretende disputar nas olimpíadas. O Austin tem um canal gigante de música no YouTube e toca em bares e clubes. Ah, e tem o Asclépio. Ele tem idade p'ra ser meu pai e seu próprio hospital.

Senti que o clima começou a pesar ao redor dele.

— Que ... diferenciada a tua família.

É. — concordou, dando de ombros — Meu pai é um galinha. Fica com muita gente ao mesmo tempo e nunca casou com nenhuma das nossas mães. Paga a pensão, mas não visita muito a gente. Minha mãe é cantora. Ela se apresenta com o Austin, às vezes. E tem eu: um mero estudante de medicina.

— ... ' tem um talento natural p'ra irritar as pessoas. — lembrei — E pela sua idade, eu diria que você passou em medicina de primeira numa Federal.

Deu de ombros novamente, como se dissesse "isso é irrelevante". Não gostei disso.

— Eu passo como "a cópia barata que veio vinte anos depois do original". O Asclépio não ganhou tudo de mão beijada, mas isso não muda o fato de que eu vou ter que me esforçar o triplo p'ra sair da sombra dele. Na verdade, acho que isso não vai acontecer nem se eu achar a cura do câncer.

É. O próprio ar pareceu estar infestado de chumbo de tão pesado que o clima ficou.

— Ser o segundo filho é uma merda, mesmo ...

Você é filho do meio?

Tinha uma surpresa misturada com curiosidade interessante em sua voz. Foi minha vez de dar de ombros, como se eu não visse problema nenhum em tocar neste assunto em questão.

— Meu pai casou com a minha mãe e teve a minha irmã mais velha, a Bianca. Três anos depois, eles me tiveram. Minha mãe acabou morrendo quando eu tinha sete anos, e o meu pai casou de novo. Quando eu tinha onze anos, a Hazel nasceu, e a mãe dela morreu no parto. Dois anos depois, ele casou com a Perséfone e estão juntos e felizes até hoje.

— ... Cara, que história complicada ...

— Nem me diga.

— O seu pai te compara com a sua irmã mais velha?

— Não é sempre, mas o suficiente p'ra irritar. — revirei os olhos — Ele sempre fala sobre como ela comeria direito, como ela faria amigos mais fácil, como ela não ia odiar o conceito de almas gêmeas de merda, como ela escolheria um curso melhor e coisas assim que me tiram do sério.

"E é tudo verdade", completo mentalmente. Seguro o choro filho de uma puta que quer sair.

— E a tua irmã faz o que quando isso acontece? — questionou, e meu sangue gelou — O meu irmão só dá risada quando falam "aím, deve dar orgulho ter um irmão seguindo os seus passos". Vou é dar passos na sua cara infeliz, Karen!

Eu teria rido ou respondido com um comentário ácido e/ ou sarcástico se meu estômago não estivesse embrulhado por causa do trauma.

— Meu professor de história geral é um corno do cacete. Já vi a esposa dele traindo ele com o professor de cálculo do curso de engenharia umas três vezes ele nem se toca. — mudei drasticamente de assunto, tomando um longo gole de cappuccino para molhar minha garganta repentinamente seca como o Saara.

— Oi? Do nada?

— Não culpo a mulher. Até eu pegava ele se não tivesse a idade p'ra ser meu pai. Se eu fosse o Daniel, sugeriria um trisal.

Soube que Solace não comprou meu papinho. No entanto, não insistiu no assunto anterior.

Talvez tenha notado que o assunto era um gatilho para mim. Talvez se importasse. Talvez só não ligava tanto para saber sobre Bianca.

Sinceramente, não ligo.

Will era forte para falar sobre seus traumas envolvendo irmãos mais velhos. Eu, todavia, não passava de um covarde fujão.

Primeira escolha [Solangelo]Onde histórias criam vida. Descubra agora