O Acidente - Parte 1

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Quando tinha seis anos, num dia tempestuoso, perguntei ao meu pai o acontecia conosco quando morríamos. Estávamos sem energia em casa devido a um problema no poste de nossa rua. Sem nenhuma distração, papai não tinha outra escapatória se não responder àquela criança curiosa de perguntas difíceis. "Para o céu." Disse-me como um bom cristão que era. "E depois?" Questionei-lhe. Toda criança criada num lar católico, como eu fui, aprende sobre céu e inferno logo cedo, e sempre nos atormentamos com o inferno, imaginando que todos aqueles a quem amamos iriam ao céu. Mas o que era o céu e o que faríamos nele?

Estava chovendo lá fora, a televisão desligada, meu pai deitado no sofá sem sono e minha mãe ausente na ocasião. Ou seja, respostas simples como "só morrendo para saber" ou "Só Deus sabe" não iriam colar comigo. Eu queria mais. Estava com aquela dúvida encrustada na mente havia quase uma semana e não havia internet em casa na época para me debruçar em teorias malucas. Era só Jairo – vulgo meu pai – e eu. "Nós ficamos no céu trabalhando." Disse ele, inventando uma história maluca. "Trabalhamos nas obras de Deus até que um dia possamos regressar." Já é de se imaginar que aquilo resultou em mais uma centenas de perguntas, para as quais meu pai precisou desviar até da própria doutrina afim de responder algo com certo sentido.

Não sei porque, mas me recordei disso naquele feriado de dois de julho. Na verdade, essa memória vem à tona toda vez que testemunho alguma morte que me toca. Nunca tive uma boa relação com a morte, para ser sincera, tenho muito medo dela, às vezes perco o sono ou fico bastante ansiosa só de pensar em minha própria morte. Em um instante, se está vivo, no outro, tudo escuro, tudo quieto, e se está morto. Eu considero dois de julho como o início de minha morte.

...

Por volta das nove horas, haveria o tradicional desfile simbolizando o dia da independência baiana. Era recomendado que os alunos fossem assistir. No meu caso, eu ainda teria que ir à escola me trocar, porque eu iria desfilar no dia, logo atrás da banda. Não por vontade própria, mas por insistência do meu pai que se orgulhava daquele feriado, e por ele, eu faria qualquer coisa, até entrar numa banda, se eu soubesse tocar pelo menos um triângulo. Não sabendo, me contentei em trajar uma veste de época e desfilar em praça pública como a própria Maria Quitéria.

A escola São Gilberto não é grande, mas naquele feriado pareceu enorme. Podia-se ouvir o sopro do vento nos corredores como uma lufada de ar ensurdecedora, enquanto nos outros dias, eram dezenas de alunos que faziam algazarra e preenchiam o ambiente com gritos e risos. Haviam apenas três semanas estudando ali, e ainda não tinha me acostumado com aquela escola, me sentia dentro de um ambiente pesado, sabe-se lá porquê, mas era como se surgisse um peso nas costas logo ao dar o primeiro passo dentro da São Gilberto. Naquele feriado, foi pior.

Um suor frio desceu pela nuca como um orvalho de uma noite de outono, meus pulmões ficaram pesados e por um instante senti falta de ar, além disso, meu coração inventou de palpitar desesperadamente desde o momento que passei pelo portão da escola. Era como se os instintos de sobrevivência viessem à tona e gritassem para que eu fugisse de lá o mais depressa possível como uma lebre foge de um mato alto onde se esconde a raposa. Infelizmente, como uma boa adolescente, desobedeci meus instintos superiores e prosseguir até chegar na sala onde o pessoal trocava de roupa.

Ao abrir a porta, por um breve segundo, vi um vulto escuro no meio da sala. Se meus olhos não se enganaram, tratava-se de um jovem de face espectral deformada, com os olhos fundos iguais a um poço de águas noturnas e a pele descamativa que esfarelaria ao simples toque de uma brisa. Sua presença decorou o ambiente num filtro acinzentado de filmes de época e criou uma sombra azulada sobre as silhuetas de meus colegas ao redor da criatura vultuosa. Seus globos oculares trevosos me encararam por uma fração de segundo e logo despareceram juntamente com todo o ambiente espectral. Aquilo aconteceu tão rápido que não pude distinguir se se tratava de um déjà vu ou uma breve dissociação de minha mente. Tão rápido, que fingi não ter acontecido.

Corri o olhar pelo restante da sala, nada parecia haver de diferente, exceto pelos alunos, cada um mais estranho que o outro. Eu conhecia dois garotos ali, Júlio e Romão; no canto da sala ainda estavam o Péricles e a Tânia na maior saliência e safadeza em pleno início de manhã. Eles não passavam de colegas. O Romão até tentou conversar comigo semana passada, mas seu mal hálito – o que era o natural, inclusive – me impediu de criar qualquer laço com ele. Péricles, boêmio e libertino, como diria minha vó, de alguma maneira conseguiu meu número e ficou dando em cima de mim como quem quisesse deixar sua marca à recém-chegada . Tive ânsia de vômito, depois me esquivei brilhantemente de suas palavras venenosas.

Mas nenhum mal conseguem transpor todo o bem. No meio daquele nevoeiro de gente estranha, estava um pontinho de luz púrpura e saltitante, a única pessoa que não consegui me esquivar ou não falou comigo com segundas intenções, Aline, minha provável futura amiga, se posso dizer. Baixinha e magricela, com seu nariz pontudo e uma língua afiada, me cativou logo com suas piadas cínicas sobre os outros e seu interesse também em animes e de como academias são horripilantes. Em dois pulos, ela já estava ao meu lado me puxando em direção ao cabide de roupas típicas.

— E aqueles dois ali no fundo? — perguntei-a, me referindo à Péricles e Tânia — Se
algum professor passar aqui...
— Precisava ver quando cheguei — sussurrou Aline — estava quase tirando o short dela. Mais um pouco e eu pegava no fraga.
— Ouvi dizer que ela está gostando mesmo dele.
— Também. — Aline abriu seu sorriso malicioso, mas logo conteve para não chamar atenção. — E eu ouvi que o Péricles fica com ela e a irmã dela na mesma noite. Essa besta aí não sabe, mas a outra irmã sabe e nem se importa.

Forcei os músculos da mandíbula para não ficar boquiaberta com aquela nova. Não sei dizer se sou uma pessoa boa ou ruim por ficar fazendo esse tipo de fofoca, mas o gostinho do ácido de falar mal de alguém com Aline era incomparável. Ainda mais se fosse de alguém que não gostássemos.

Pegamos nossas roupas e fomos nos trocar no banheiro feminino, longe daquele povo chato da sala. Ao lado de Aline, pude esquecer por um tempo o ar sinistro que havia sentido pela escola naquele dia, ela fazia meus pensamentos viajarem a outros lugares, distantes daquela vidinha sem sal. E ali ficamos jogando conversa fora enquanto nos trocávamos, fizemos isso sem pressa alguma, posso até dizer que me sentia ótima no momento. Então, comecei a chorar, chorei como se toda a alegria sofresse metamorfose e se transformasse num poço de angustia e desespero.

— Ayla? Por que está chorando assim? — Aline se aproximou. Quando me dei conta, já estava de joelhos aos prantos. — Ei! O que tá acontecendo? É sua crise?
— Eu não sei... — disse-lhe quase engasgando com minhas lágrimas — Não é assim.

A RESSONÂNCIAOnde histórias criam vida. Descubra agora