Luto e tentações - Parte 3

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O ansiolítico me deixara letárgica nas primeiras tomadas, devo admitir, até gostei daquilo, fiquei livre do luto pelo período dos efeitos. As visões desapareceram a princípio, porém, a cada hora que os medicamentos perdiam seus efeitos, como uma pedra sobre os ombros, a tristeza me impactava.

Durante o tempo que transcorreu até o funeral, mantive-me na maior parte das vezes na sala ou no quarto. Como haviam cancelado às aulas naquela semana em memória às vítimas, gastei minhas energias apenas dentro de casa. Por algumas horas, ficava com meu irmão o observando brincar ou jogar videogame, até me ofereceu para ser o player 2, mas meu desânimo nos fez perder várias partidas, então decidi poupá-lo do estresse. A solidão estava de bom tamanho para mim.

É interessante como nos enganamossobre a solidão até podermos experimentá-la de verdade. A solidão é um estadoque transcende nossos corpos, assim podemos nos sentir solitários mesmo aoredor de muitas pessoas, inclusive amigas nossas. É uma jaula, como numzoológico, todos te observam e até jogam coisas para comer, mas no fim dascontas, é só você ali atrás das grades. Dessa forma também deveria ser a morte.Confinada solitariamente dentro de um caixão frio, toda costurada por mãosalheiras, mantendo os olhos fechados ao que um dia fora seu mundo. Mesmo sendoauxiliados tanto ao nascer, como ao morrer, ainda viemos sozinhos, e iremossozinhos. Morremos sós, pois é uma experiência individual e única.

Para me sustentar naquele estado, tentava ignorar ao máximo o acidente. Evitava a televisão, notícias na net, fofocas aleatórias dentro de casa. Fugi. Obvio, porque tive medo, fugi daquilo como o drácula do Sol. No entanto, não podemos fugir para sempre de nossos problemas, uma hora a vida joga na nossa cara de propósito, assim ela é, irônica e imparcial.

...

O interrogatório policial se sucedera em nossa sala a fim de evitar qualquer exposição ou estresse de minha parte. Em cada lado do sofá, meus pais acompanharam pergunta por pergunta do investigador. Ao contrário do que deveria, não me senti segura com a presença deles; ao invés disso, eles se tornaram mais testemunhas julgando cada memória que pude recordar do acidente.
Além disso, me sentia mais acuada a dizer-lhes toda a verdade (mundo misterioso, criatura bizarra e espíritos). De qualquer forma, a única preocupação dos policiais era saber se houvera algum motivo interno no ônibus que pudesse proporcionar o capotamento.

O relatório forense, em alguns dias, concluiria o inquérito, arquivando-o sem uma explicação totalmente plausível sobre o ocorrido. Das hipóteses levantadas — o motorista haveria sofrido alguma afecção que descoordenasse seus movimentos, ou alguma peça danificada no veículo — acabaram sendo descartadas por falta de provas. Do acidente, a cidade só se lembraria de uma terrível tragédia, na qual, apenas uma menina sobrevivera. Até as vítimas levadas ao hospital comigo, falecerão dias depois. Todos por causas não totalmente entendidas. Uns dirão que sobrevive por milagre, outros que por maldição, tanto para mim quanto para as famílias dos mortos.

Isso mesmo, sou uma maldição às famílias das vítimas. Por dois grandes motivos. O primeiro é que eu roubava os holofotes dos jovens mortos. Quando ocorrem grandes catástrofes, ou mesmo as pequenas, observamos séries de reportagens com as famílias enlutadas, acompanhamos breves biografias das vítimas e tudo mais.
Mas quando há sobreviventes, especialmente um só, as notícias se enviesam ao sobrevivente como se descobrissem uma joia rara em meio aos destroços calamitosos. Ao passar do tempo, ninguém conseguirá se recordar de todas os mortos, mas se recordarão do único sobrevivente, aquele que, com vida, carrega a morte consigo.

O segundo motivo é a ilusão do reflexo dos filhos perdidos vistos em mim pelas famílias. Se todos morressem no acidente, cada familiar iria sofrer teoricamente igual, eles saberiam que ninguém foi poupado da dor de perder alguém e que as memórias do ente amado iriam embora naquela última viagem de ônibus.
Entretanto, minha presença viva impedia essa percepção. Lá estava eu: a colega dos filhos perdidos, a última lembrança deles perambulando ainda com o coração batendo, àquela poupada de levar desgraça aos lares. Minha vida era a certeza das famílias de que não conseguiriam se esquecer da dor da morte dos jovens.

Os olhares pesados de acusadores caíam sobre mim naquele dia cinzento e frio. Decidiram realizar o velório de todos em um único evento. O espaço do centro de convenções foi doado, também foram cedidos as ornamentações e custos para o enterro. Às famílias só lhes restava chorar frente ao caixão do jovenzinho, da jovenzinha, amado filho, querida prima, doce criança, perfeita namorada.

Cada caixão estava disposto lado a lado, todos lacrados, pois os mortos tinham as faces na maioria desconfigurada. As pessoas se dispuseram em filas para prestarem suas últimas palavras, enquanto os demais – outros familiares – ficavam sentados aguardando o culto de despedida.

Eu entrara muda e permanecia sempre ao lado de minha mãe, evitando também a encarar as pessoas, pois temia por seus densos olhares, só queria sair de lá ainda calada. O porte do meu pai – um homenzarrão pardo de grossos músculos e uma face mascarada pela barba de poucos amigos – me assegurava alguma segurança contra os intimidadores. Aslan, por outro lado, conhecia algumas crianças presentes no velório e não se conteve a se levantar e ir de encontro a elas, o que me manteve apreensiva. Poderiam os familiares se aproveitarem dele para questionar-lhe acerca de mim?

As horas divagaram entre um discurso, algum sermão do pastor Olivêncio, e a pregação do padre Josélio. Choros vem, clamores vão, até que minha mãe pegou pelo meu braço e me pôs a levantar consigo.

— Vamos prestar nossas homenagens às vítimas, antes de saírem ao sepultamento. — Manteve um olhar sério, mas pouco intimidador. — Sei que se sente desconfortável, mas como boa cristã, precisa prestar-lhes esse serviço fraterno, filha.

Fomos até os caixões, ficando próximos a cada fileira deles por uns instantes. Não sei como dona Diana fazia suas preces, mas em minha mente apenas jazia as últimas imagens daqueles jovens: corpos estripados por engrenagens e outros corpos; corpos mutilados e devorados por uma criatura abominável; corpos em tais estados que pareciam apenas corpos, sem resquícios de identidade.

Desviei o olhar, e fitei-lhes por acaso. Aqueles rostos me encarando como uma horda de mortos-vivos, ou melhor, vivos-mortos, que mal esperavam a hora de me dissecar e saborear das minhas vísceras. Senti isso da maioria, exceto de dona Marla.
A mãe de Aline trazia uma feição xoxa, com os sulcos profundos e olhos caídos, enquanto me encarava, devia estar a lembrar da filha que tanto foi minha amiga. "Eu sinto muito", eu tentei dizer com certa expressão de melancolia. Ela piscou os pesados olhos e pareceu repuxar os lábios como se dissesse "obrigado".

Já quase voltando ao meu lugar de antes, senti a visão enturvar e as plantas dos pés formigarem. Naquele breve piscar de pálpebras, quando vemos uma fugaz escuridão diante de nós, porém que comumente ignoramos, notei o centro de convenções em outro espectro de cores. Estava como se banhado de um filtro negativo, as pessoas cintilavam feito chamas de vela, estas rodeadas por uma fina camada de fumaça cinza negra suspensa no ar. Então, diante de mim, eu o vi mais uma vez.

Sua face estampada em minha sombra, aqueles olhos rasgados de puro sangue e boca entrecortada com dentes de serra, a criatura do pesadelo voltara com o mesmo sorriso sádico de antes. E ainda no mesmo piscar, lá estava ao lado da sombra, mais outra, ambas decorrentes de meu corpo.
Entretanto, uma espelhava a minha silhueta, enquanto sua irmã, se assemelhava a sombra de um demônio: de chifres, corpo deformado e algo como tentáculos ou coisa do tipo se esgueirando por entre a pele.

 Quis gritar e o ar se prendeu dentro dos meus pulmões.

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