O espírito do fundador surgiu sereno, altivo e complacente às tiradas feitas por Yosaka. Não possuía uma aureola de anjo, chifres de demônio, ou mesmo a palidez conhecida das histórias de fantasmas. Estava como tal se via nas fotografias antigas, até melhor, pensaria que fosse o próprio vivo se não fosse pela energia cintilante que fluía em sua silhueta mantendo a forma em nossa dimensão física.
— Jovem Ayla. — disse como um sábio oriental de filme norte-americano. — Fico feliz que venha ao nosso encontro aqui na casa, estamos muito preocupados contigo e com o atual estado das vibrações pairando pela cidade.
— O discurso de um espírito evoluído como o do Joviniano, por vezes, pode ser muito formal, técnico e mesmo não compreensível a alguém com pouca experiência no saber espiritual, mas não se acanhe com este detalhe.
Com aparição do espírito e a calma de Yosaka, minha suspensão da descrença foi abalada a tal ponto que passei alguns segundos calada decidindo se eu perguntaria sobre o espírito, ou sobre minha condição, ou como aquilo tudo poderia ser possível. Mas Pedro Joviniano tendo lido minhas aflições, dissipou a ventania de pensamentos.
— Como se tu, realmente, nunca tivesses acreditado.
— A mediunidade costuma aparecer desde a infância, Ayla. Se não se recorda de experiências espirituais deve ser devido às grandes pressões psicológicas e sociais que selaram as memórias de seu consciente. — Yosaka estendeu sua mão em minha direção e lançou seu sorriso mais normal até então. — Se desejar, podemos não apenas libertar seu corpo e mente, como também sua alma para podermos amplificar sua mediunidade.
— Não quero.
O braço pendente do médico despencou sobre a mesa desajeitado, enquanto o espírito permaneceu imutável. Eu não me interessava pelo chamado à aventura, ter mentores ou me tornar super poderosa, entendia que com grandes poderes vem grandes sofrimentos, eu queria apenas alívio.
— O senhor quer me animar com essa história de mediunidade, mas só aumenta meu medo de que toda essa dor sentida se torne pior. Não durmo direito há dois meses, vejo monstros o tempo todo, nem me recordo do meu último sorriso... Seria muito mais fácil se for só uma desordem mental, loucura... Seria mais fácil que aceitar essa ideia de forças maiores.
— Existe um enorme vácuo em seu espirito, jovem Ayla. Onde poderia haver luz e bondade, só se tornou uma gota de esperança sendo diluída pelas forças do desespero, obsessão e apatia. Os medicamentos da psiquiatria te darão uma cortina para escondê-los, mas só a espiritualidade abrirá as janelas da felicidade, mesmo que junto a ela venha outras dores. Já disse nosso amigo Buda, "a dor é inevitável, o sofrimento é uma escolha." Não posso te prometer livrar-te da dor, mas anuviar seus sofrimentos, com certeza.As palavras do Yoda espiritual emanavam uma nuvem de calmaria mais eficiente que os entorpecentes para desacelerar meu coração e diminuir a tensão dos ombros. A sensação de um corte transpassando meu peito tomava conta de mim todas às vezes que me decidia por uma postura ativa, mas com as palavras daquele espírito, minhas palavras saíram plumando, contei-lhes as bizarrices das últimas semanas em detalhes surpreendentes.
— Há um obsessor, deveras. Quase um... — Joviniano se conteve na última conclusão, parando um segundo para encarar o médico absorto após a história.
— As medicações interferem nas vibrações mentais por alterações sinápticas e cognitivas, mas contra um obsessor desse nível, apenas com comprimidos, não se verá livre tão facilmente, Ayla.
— Já usei antes e deu certo!
— Contra um espírito que utiliza apenas dos sentidos, é possível. No seu caso, temos um comprometimento com o fio que separa a força do seu corpo físico da do corpo espiritual do obsessor. Em outras palavras, ele parece poder de controlar como uma marionete. Esse tipo de obsessor recebeu diversos nomes pela história, o mais famoso deles era demônio. E o que sabemos desses demônios é muito raso que muitos acreditam que nem existam.
— E aquelas pessoas que dizem "baixar o santo"? — perguntei-lhe. Minhas pesquisas anteriores me mostraram que muitos recebiam entidades em seus corpos ou que espíritos utilizavam pessoas para escrever cartas.
— Quando há fidelidade nos relatos e dignidade da pessoa a quem recebeu o espírito, o termo que utiliza diz respeito ao médium que se dispõe a emprestar seus sentidos por alguns instantes ao espírito. Porém, há certa consciência do médium no ato, e não é uma possessão, e sim, como se o espírito pegasse na mão da pessoa, ou transmitisse seus pensamentos para energia sonora do outro. Tomar o corpo a bel-prazer, independentemente da complacência do indivíduo, isso é tarefa dos mitológicos demônios.Os dois falavam mais consigo, desviando-se de mim para debater sobre espíritos obsessores e a existência ou não de um demônio. Eu era pouco atingida pela angústia desde que entrei pelos portões da Fundação e muito menos na presença de Pedro Joviniano, depois de semanas, conseguia pensar com maior clareza e absorver informações constantes. Suas discussões me deixavam com medo e curiosidade, mas a gota de esperança parecia se expandir, enquanto as memórias trágicas do acidente se dispersavam.
— Precisamos que se trate aqui conosco. É a melhor forma para livrarmos desse obsessor.
Yosaka falou curto e sério, sem brechas, sorrisos, disse tenso e me desprendeu do transe de agora pouco. Me tratar no lugar conhecido como manicômio, onde ficam internados os piores loucos, seria o golpe fatal em minhas chances de ser normal e sair dos holofotes.
— Estão malucos! — não contive uma pequena risada irônica após dizer isso. — Vim aqui uma vez já é motivo de ser zoada pelo resto do ensino médio na escola. Agora ficar aqui direto? Eu vou virar até programa de sábado à noite sobre a sobrevivente-do-acidente-que-enlouqueceu-e-pode-ser-perigosa. Nem pensar! Tomo todos os remédios possíveis, mas aqui eu não fico. Pra quê, afinal?
— Precisamos de total vigilância em seu caso. Em pouco tempo, ele conseguiu tomar seu corpo, o que fará se continuarmos deixando você livre por aí? Ainda mais com sua mediunidade elevada, mas com um controle pobre, isso seria muito ruim. Muito ruim! Possivelmente precisaremos exorcizar o espírito, e você tem que estar preparada.Diante da exaltação do médico, Joviniano tocou-lhe no ombro e o acalmou. Eu descobriria com o tempo, mas espíritos podem saber o que pensamos e naquele momento, ele enxergava meus temores intimamente. Tomou o rumo da conversa com sua suave voz.
— A decisão é apenassua. As consequências, nem tanto. Os males que podem assombrá-la, perturbar aordem familiar e causar-lhe desgastes que viverão eternamente em tua memóriasão menores do que a vergonha dos colegas e da mídia? Tu não és uma louca,criança. Mas menos ainda vive como os outros. É uma médium obsediada, e não obsidiada. E precisa ser uma médium ativa, não passiva. Toda escolhaacarreta duas consequências, boas e ruins. Quem há de pesá-las é você.
Quando terminou de falar, Yosaka estava mais calmo e eu totalmente confusa com o vocabulário e digressões do espírito.
— Tenho medo de acordos com meios-termos — disse Yosaka —, mas e se inicialmente, começarmos um tratamento híbrido? Pode viver sua vida lá fora como sempre, em dias marcados, comparece até aqui para prosseguirmos com a parte espiritual. Isso alivia seus temores, Ayla?
— Tipo, uma vez na semana?
— Acho que seu caso é mais urgente. Pensei em... 3 vezes?
— Sei não.
— Uma vez na semana, aos sábados, durante toda a manhã.
O espírito proclamou quase como um veredito, recebendo consentimento do médico e sem perceber, o meu. Aos sábados, poderia ir ali sem levantar conversas na escola e não atrapalhar a rotina dos meus pais. Pensar que um fim de semana no sanatório poderia soar como castigo me desagradava, mas aquele dois estavam firmes quanto o tratamento espiritual, também não poderia duvidar estando em frente a um espírito.
Yosaka abriu a gaveta à sua esquerda e retirou um pingente com um cristal alaranjado em forma de bastão na ponta. Estendeu sua mão até mim e entregou-me o objeto, pedindo que o utilizasse. Coloquei o pingente e uma carga energética correu de ponta a ponta do meu corpo, senti-me igual quando se sai de um lugar frio e se entra num aconchegante e ameno.
— Não é um cristal de cura. Nele estão canalizadas boas energias advindas de mim e outros espíritos amigos. Enquanto usá-lo, o obsessor não perderá suas forças para atormentá-la, mas é algo paliativo. Por favor, incialmente, não o tire por nada.
— É isso? As coisas vão melhorar agora?
— Depende o quão poderoso é o seu obsessor. O cristal te protege, não seus conviventes, eles podem se tornar vítima dele de alguma forma.
— Ele pode me matar?
— Eles matam o obsediado por meio da indução do suicídio na mente da vítima. Já cogitou tirar sua própria vida?
— É... Devo ter pensado...
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A RESSONÂNCIA
Mystery / ThrillerDeixe seu voto e comente o que achar interessante sobre a história! Capítulos novos às sextas-feiras... Ayla é uma adolescente com receios sobre a morte, que teve sua vida transformada de uma hora para outra por conta de um Acidente sobrenatural. Ap...