"A mão que esmaga uma rosa, sangrará por causa dos espinhos; os olhos que encaram a morte, receberá seu olhar como retorno; não há dor causada, que não gere dor ao causador. Quando se dança sobre a lápide de um defunto, se toma como consequência que ele desperte e lhe cobre a valsa."
Um dia após o terrível dia, como assim chamaram três de julho, retornei a minha casa, podendo abraçar outra vez meu pai e Aslan. Apesar do semblante debochado do caçula, soube que passara a noite inteira preocupado com meu estado. Já seu Jairo, quase entrou em parada cardíaca quando descobriu acerca do acidente, ainda por cima, deu um espetáculo digno de um histérico para poder me acompanhar no hospital. Sabendo disso, fiquei até aliviada por mãe ter ficado, foi menos vergonhoso, eu diria.
O abraço fraterno me aquecera como um cobertor no inverno; aquelas lágrimas quentes derreteram sobre minha nuca e não pude conter em chorar também, abraçando assim aquela família como se fosse a única coisa que me sobrara, e realmente era. De repente, senti uma muralha interior se despedaçando, a mente se tornando mais pesada acompanhada de pontadas nas têmporas, além de certo gelo subindo pelas pernas. Então, a questão do acidente veio à tona feito uma represa explodindo e alagando meu coração ainda sem cicatrizar.
Sem me conter, tossi e berrei de tanto chorar sobre os ombros acolhedores, até poder recuperar o fôlego e senti potente o suficiente para me sustentar em pé sem apoio. Assim, ficamos os quatro em silêncio profundo até termos forças para almoçar. Um almoço de felicitações, com peru assado e a porra toda digna de ação de graças. Ficamos ali sentados, sem comentar coisa qualquer envolvendo o acidente, apenas desfrutamos do prazer de estarmos todos vivos e bem para podermos fazer aquilo mais uma vez.
...
Yosaka estava certo sobre muito do que disse. Não demorou após minha chegada em casa para poder aparecer os primeiros enxeridos. Começando pela mídia, a rede de televisão da Bahia logo nos convocou à uma entrevista para falar sobre o acidente e como era bom ter sobrevivido àquilo. E quando esse povo quer uma informação, eles conseguem, afinal, quando mais rápido eles conseguirem, mais rápido nos livramos deles.
Contudo, dona Diana bateu o pé no chão e afirmou que eu não daria entrevista alguma a qualquer um que fosse, televisão, rádio, live no Instagram ou polícia. Então, ela mesma se dispôs naquele dia a fazer tudo por mim, dando as informações que queria, como queria e da maneira extravagante dela... Fazer o quê, né?Embora o desejo de minha mãe fosseme afastar o máximo que conseguisse daquilo que pudesse me recordar do acidenteou desencadear uma crise, eu como ótima adolescente, insisti em fazer ocontrário. Algo em mim queria saber mais sobre o ocorrido, então, a primeiraatitude minha fora entrar nas redes sociais e sites de busca na internet. Comomeu celular havia sido destruído no acidente, só restou fazer as pesquisas peloPC, numa aba anônima, só por garantia de dona Diana não vir espiar meuhistórico depois.
"Acidente de ônibus deixa vinte e sete mortos e cinco feridos..."
"Estudantes morrem vítimas de acidente de ônibus no interior da Bahia..."
"Estudante recebe alta após terrível acidente de ônibus..."
"Sobrevivente de 16 anos, morre internada após complicações..."
Acessei algumas matérias de sites mais sérios e com manchetes menos polêmicas afim de descobrir o que havia causado o capotamento do veículo. Porém, nenhum deles soube informar, apenas apresentavam suposições sem fundamentos factíveis; os mais plausíveis foram aqueles acerca de um problema técnico no ônibus. Mas eu sabia que não podia ser, lembro-me de tudo estar indo bem até aquela visão... O homem mascarado...
A sensação da lembrança foi como uma lâmina perfurando minha garganta, fazendo com que, subitamente, eu me afastasse do computador. Fechei os olhos, aproximei os trêmulos dedos no pescoço, mas apenas senti a pele umedecida e a pulsação firme das carótidas. Então, joguei-me sobre a cama e esperei certo período, respirei profundamente; tentei pensar em algo diferente; no almoço feliz em família; no gosto do peru; na boca imunda de Aslan após cada garfada...
Pude perceber o retorno do calor corporal às extremidades, as palpitações diminuíram junto com a dor no peito, enfim, eu estava calma novamente, apenas com aparente início de enxaqueca. Como eu odeio enxaqueca, mas havia muito tempo que eu não apresentava. Ao abrir os olhos, lá estavam as dezenas de vagalumes sobre mim, dessa vez, a aura quase tomava a forma de um aurora boreal de tão intensa.
HEHEHEHEEEHEHEHEEEE!
Pus-me a sentar! A risada estridente viera de minha frente como alguém esganiçando, o som entrecortava como se houvesse engasgos no meio dos risos. Pelo quarto só reparei na tela do computador ligada com uma página aberta nele. Ao que parecia, era de um site de notícias com um vídeo escurecido ao carregar.
http://www.abraovideoayla.com.br/abra-o-video-e-se-divirta/
O comando de abrir o vídeo estava estampado por todos os lugares no site, inclusive nas imagens de propagandas escurecidas, manchetes e o corpo do texto. Apavorada por aquilo se tratar da obra de um hacker, apertei o botão do estabilizador querendo desligar logo a máquina. Contudo, mesmo com as luzes do dispositivo apagadas, o visor continuou acesso com aquele vídeo sendo carregando: 70%, 80%, 90%...
Pelo vídeo, pude ver policiais e profissionais trajando jaleco em frente a um chão sujo com rastros de sangue num ambiente pouco iluminado por lâmpadas incandescentes. E espalhados pelo solo, estavam os corpos estraçalhados de meus colegas sobre sacos escuros, todos eles deformados de alguma maneira. Ao redor de seus corpos, criaturinhas humanoides em carne viva e seca se abraçavam contra a pele daqueles jovens como moscas frente a uma carniça.
— Eles parecem ter saído de um lixão. — disse um dos policiais — Nem parecem que morreram há pouco tempo.
— O estado de putrefação está mais avançado que o normal. — falou um médico que examinava o interior do abdome de um dos corpos — Eu preferia que a família não os pudesse ver nesses estados. Aqui está uma afilhada minha, filha de um amigo querido. — Ele apontou para Joana, eu a conhecia, era da banda.
— Vamos logo, ou vão apodrecer antes de serem enterrados. — disse o policial com a mão sob nariz — Isso é a pior coisa que já vi na vida.Enquanto falavam entre si, os cadáveres eram devorados pelas criaturinhas horrendas que sorriam, desfrutando dos vestígios carnais daqueles adolescentes. Eu os olhei atentamente, quase hipnotizada, não consegui mover meus olhos por vontade própria. Foi quando eu a vi: Aline.
Haviam grossos pontos suturados em seu ventre e ao redor do pescoço, os seus familiares olhos entreabertos transmitiam imensa tristeza, enquanto seus lábios descascados pareciam querer me dizer algo. Entre uma gengiva e outra, fios se entrecruzavam, fortificando a mandíbula em queda.
Um sorriso com restos de sangue coagulado surgia aos poucos de seu semblante cadavérico. Suas escleras foram tomadas pela tonalidade negra piche, ao mesmo tempo em que por entre os lábios, caia uma baba rosada, e daquela cena inesquecível, apenas ouvi a voz rouca de Aline sussurrar numa feição de alegria mortal: socorro...
O vídeo se findou. O monitor do computador foi tomado por uma tela em tonalidade sangue escuro como se bastante oxidado, quase preto. Um semicírculo branco surgiu em formato de sorriso com dentes de serra. E dois rasgos vermelhos persa formavam os olhos daquela face me encarando pelo visor do PC.
— Todos estão mortos por sua causa, Ayla. — disse a face medonha com sua voz enrouquecida e temível — Mortos, e tu, viva! Suas almas não descansarão até te levar até o inferno com eles. Enquanto viver, levará a ruína todos em sua volta. A safada da sua mãe, o carniceiro de seu pai, e aquele ninfeto, todos serão devorados.
Dezenas de mãos frias surgiam sobre mim, apertando-me e querendo rasgar minha pele. Quando desviei meu olhar para os lados, lá estavam eles, eram meus colegas em seus semblantes cadavéricos vindo atrás de mim. Suas mãos tamparam cada centímetro do meu ser, até que minha visão foi tomada e cai dentro de uma escuridão gelada, como se estivesse soterrada embaixo de uma terra seca e infrutífera.
Não, sua morte não será tão simples. Vamos, abra os olhos, quero sentir cada vez mais seu desespero!
A voz daquilo percorria minha mente até que pudesse sentir uma pressão contra as costas. Estava escuro, o frígido vento levantava a cortina pela janela, a visão do meu teto e a sensação do colchão me trouxe à realidade.
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A RESSONÂNCIA
Mistério / SuspenseDeixe seu voto e comente o que achar interessante sobre a história! Capítulos novos às sextas-feiras... Ayla é uma adolescente com receios sobre a morte, que teve sua vida transformada de uma hora para outra por conta de um Acidente sobrenatural. Ap...