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Entrei na sala de aula com um peso no estômago.

Entrei a mesma carteira vazia e disparei para lá. Estar na escola me fez lembrar de ontem. Mesmo que eu tenha acordado e vindo para cá após Saulo me acordar, meus pais não suspeitaram de nada, ainda bem. Eu odiava ser uma pessoa com uma boa memória, às vezes era algo bem insuportável.

Saulo e Gisele apareceram de braços dados de novo, dessa vez não me incomodei. O olhei, ele me olhou; nossos olhos se conheceram e se mostraram difíceis de seguirem outro caminho. Eu adorava olhar para ele com a luz do dia, ele ficava dourado, ele ficava brilhante. Os músculos dos seus braços ficavam mais destacados do que à noite e seu cabelo parecia desenhado a lápis pelo próprio Deus. —Qualquer deus, não importava qual, mas ele, ela, tinha bom gosto e muito talento.

Em segundos ele sentou ao meu lado.

Em segundos Saulo deu um beijo na minha bochecha. Um beijo muito rápido para que eu pudesse sentir o calor dos seus lábios. Mesmo assim, sorri para ele. Ele queria que eu retribuísse?

—Vamos sair hoje, topa? No muro.

—Você e eu à noite?

—Não. Escute o plano...

—Para onde vamos?

—Vamos ver Saulo e os outros pintarem. —Gisele responde a Vinícius.

Ela está segurando a mão dele enquanto entramos no carro. Meu irmão se acomoda do meu lado e Gisele fica no banco do carona, ao lado do namorado. Marcos sorri para meu irmão e para mim.

—Tudo bem?

—Tudo —Vini responde, educado —e você?

—Gostei dele. —Marcos olha para mim pelo retrovisor. Olhos castanhos escuros, lembrei.

Disparamos em direção ao muro.

Quando chegamos vi a moto de Saulo perto do poste que peguei no sono. Lembrar disso faz com que risadas sejam engolidas.

Saulo já estava com latas de tintas e luvas, jogou um par para Marcos e ele pescou uma lata de tinta na caixa de papelão. Eu precisava saber aonde essa caixa ficava escondida. Vini, Gisele e eu ficamos no carro, assistindo.

—Eles sempre pintam juntos? —Perguntei.

—Sempre. Às vezes Marcos deixa de sair comigo pra vim pintar com Saulo.

Rio.

—Eles são amigos desde criança igual a vocês dois?

—Ah, não. Não, definitivamente não. Uma história para outro momento, temos crianças no recinto. —Seus olhos voaram para meu irmãozinho, que admira todas as latas de tinta e o que podem fazer nas mãos daqueles dois. —E vocês?

—O quê? Saulo e eu... Nos conhecemos...

—Eu sei. Mais ou menos, ele contou que conheceu você, mas não contou seu nome até ontem. Como se conheceram?

Então conto e a cada parte da minha história Gisele ria até chorar. Ela é uma pessoa que adora falar, sempre perguntando sobre algo ou notando algo que passa despercebido pelos meus olhos.

—Então, tirando seu irmãozinho —Gisele comenta bebendo uma cerveja que pegou de Deus sabe onde —, somos todos bi aqui.

A olho, depois olho para Marcos, depois olho para meu irmão que nem liga para o que estamos conversando. Todos?

—Todos? —Indaguei.

—Todos. Marcos se descobriu no quinto ano e eu só no sétimo. Saulo... Bom, ele disse que sempre soube. E você?

O rumo do assunto me deixa desconfortável. Eu não sabia dizer, sequer formular. Mas eu havia pesquisado a palavra no dicionário então essa minha incerteza não fazia sentido.

—Eu... Não sei.

—Ainda tentando se aceitar?

Nego. Assinto. Fico divido entre ambos e acabo olhando para minhas coxas cobertas pela calça jeans. Vinícius também ainda está de uniforme, assim como todos nós.

—Ei, tudo bem —Gisele coloca a mão no meu ombro e aperta —, cada um no seu tempo. Tenho um tio que levou vinte anos para se descobrir bi, hoje ele mora com o namorado e tem uma filha com a ex-mulher.

—Ele está bem?

—Com o quê? Com a sexualidade? —Assinto —Cada um no seu tempo, como eu disse. Ele nunca falou nada comigo, mas está sorrindo cada dia mais com o namorado. Esse é o importante, sorrir cada dia mais com as pessoas que estão ao seu lado. Minha avó disse que ele iria para o inferno por causa disso... Bom, meu tio disse que o inferno não tinha lugar para alguém como ele.

—Porquê? —Perguntei.

—A resposta dele foi a melhor: Porque no inferno não tem lugar para quem se ocupa apenas amando e se amando.

Absorvo a fala de Gisele como se fossem o ar depois de privar meu pulmão dele. Aprecio, absorvo, depois sorrio e digo que o tio dela é um homem sábio.

—É mesmo.

Quase às três da tarde o muro estava finalizado. Marcos e Saulo trabalhavam incrivelmente rápido e quando pude finalmente analisar a pintura, me questionei se não seria a coisa mais bonita que já vi.

—O que é? —Vini pergunta apontando para todos os lados.

—Uma réplica mais atual de Noite Estrelada, Van Gogh.

Um muro que antes, branco, um nada, uma tela em branco agora se transformou em um quadro de um azul tão profundo que eu me permitiria ser engolido. O azul se misturava com o preto e juntos eles ficavam em boa ação para formar um céu escuro, um céu pleno. Neste céu havia estrelas queimando, estrelas que chamavam e roubavam atenção por causa do amarelo, do branco, do laranja e do prateado. Senti que se eu quisesse esticar minha mão e alcançar aquela pintura, ela me queimaria. Emanava, parecia, calor. Abaixo das estrelas estavam traços grotescos de preto e branco que desafiavam a lei da física, entortados, apontando e chegando aos céus sem nuvens. Pontos amarelos, luz; pontos pretos, sombras. Elas se fundiam e não havia explicação para dizer o quanto estavam parecendo real como na noite do lago de estrelas. As casas escuras, as casas com algumas luzes acesas. Era uma pintura que emanava sonhos e realidade demais.

Prendi a respiração por um momento. Tive que soltar quando Saulo encostou seu queixo no meu ombro e disse, baixinho:

—Van Gogh disse, uma vez, que queria expressar a esperança através das estrelas. Eu não sei a frase certa, mas me inspirei nisso. E em você, Samuel.

—Em mim? Por quê?

Um beijo demorado na minha nuca que me arrepiou.

—Porque eu lembrei de como você ficou naquele lago estrelado, eu vi as estrelas nos seus olhos tanto quanto na água e nunca vou me esquecer daquele momento, nem em cem anos. Van Gogh que me desculpe, mas se ele admirou as estrelas e pegou inspiração delas, eu fiz melhor.

Começo a rir em seus braços e olho para Vini, depois para Gisele. Ela puxa meu irmão para mais perto do muro e o distraí enquanto eu beijo meu namorado. A boca dele deslizava na minha com facilidade e não demorou muito para que eu quisesse fazer tudo o que meus pensamentos não deixavam.

Quando nos separamos, o olhei nos olhos e perguntei qual o nome da obra.

—Pontos prateados em um céu azul escuro. Extenso, eu sei, mas quando pensei nesse título, à noite, eu não consegui largar.

—É perfeito. —O beijo mais intensamente até que Gisele se canse de distrair meu irmão.

—Vamos tirar uma foto, todo mundo. Até você, Vini.

Voltamos para casa às três e meia. Abri a porta de casa e preparei o almoço de Vini e o meu.

—Não podemos contar nada sobre hoje aos nossos pais, certo?

—Nadica de nada, eu prometo. Você gostou da pintura?

Eu amei, penso. 

Pontos Prateados em um Céu Azul Escuro (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora