O pôr-do-sol de Surrey Hills nunca fora tão frio em um dia quente de verão. O gramado, remotamente verdejante, estava ressequido e amarelado, um tanto pisoteado, e não havia um único casal a correr pelo parque. Os balanços haviam sido ocupados pela brisa que aproveitava o deserto para brincar, e gangorras de engrenagens rígidas e enferrujadas rilhavam ao céu que ensombrava despojadamente. Uma chirriada cantou em resposta, e ouço um plumoso bater de asas se aproximar. Um rasante colorido passou por mim em direção ao sol, Scáthach, a corujinha-das-torres que crescera acinzentada como o céu nublado, delicadas manchas alaranjadas que destacavam o azul profundo que mais lembrava uma noite estrelada; o rosto branquinho em formato de coração, uma fenda avermelhada cortando a testa e contornando os profundos olhos de silício. Fez uma volta sinuosa, a silhueta escura em contraste com o sol laranja-flamejante, e voltou nesta direção, as garras azuis-acinzentadas buscando pelo meu braço para que pudesse pousar. Scáthach bicou-me a mão carinhosamente e retribuí-a esfregando o dedo como uma carícia do dorso até o bico, ela chirria travessamente.
No todo, a ideia de estar sozinha me soaria como castigo, quando simplesmente vi-me acordando em um dia e desejando isso. É claro que Scáthach era uma atalaia ao sentimento de solidão que não se apoderara de mim uma vez sequer, desde que busquei refúgio pela primeira vez nos altos campos do parque Surrey, mas o silêncio, outrora, também me fora sinônimo de solidão, entretanto, cá estou eu, buscando o silêncio das árvores, o canto da brisa, as plumas reconfortantes de Scáthach, o ronco abafado do tráfego da rodovia vez ou outra e mesmo o desafinado ranger das gangorras, para me perder da realidade e não mais pensar em nada.
Não nego a falta que sinto do barulho de meus livros, o coração retumbando de adrenalina no peito, meu cérebro manifestando vozes energéticas e felizes; ou mesmo a algazarra de meus devaneios, mas quando me pego agora devaneando, estou chorando no minuto seguinte, pois tudo o que penso é o fim do ano letivo, e não me sinto verdadeiramente recuperada de tudo o que aconteceu. Sem perceber, estou chorando de novo, pega desprevenida pela lágrima fria que a brisa soprou do meu rosto. Pisquei os olhos apressadamente e funguei, respirando fundo, Scáthach piando e agitando as asas, como se bem me pudesse ler. Eu sorrio amarelado e a acaricio outra vez.
— Anne, meu bem!
O céu deveria estar da cor de meus olhos, e os candeeiros da rodovia já estavam acesos, quando me virei sobre os ombros e vi mamãe do outro lado da rua — os cabelos chanel ao vento, a tiara preta, um suéter vermelho, a saia rodada, a meia grossa e o salto alto —, acenando para mim com os ombros encolhidos contra o corpo. Scáthach levantou voo e eu espalmei as mãos no chão para me levantar. Mamãe passara bons segundos abanando minhas roupas para livrá-la do gramado apinhado, então desdobrou o casaco que trazia nos braços para me embrulhar.
— Está tarde, você já deveria estar em casa.
— E como sabia que eu não estava?
— Não sabia, passei aqui justamente por isso.
— Não gosto de ficar lá sem você e o papai. Henry passa o dia inteiro ocupado para me dar atenção, e mesmo assim, tudo o que eu poderia contá-lo, já contei.
Mamãe resmungou da forma que sempre fazia quando discordava de algo que não sabia contrariar, e pegou minha mão seguindo a rodovia Holmesdale. O último veículo pareceu alongar-se na estrada até finalmente passar por nós, então mamãe aferrenhou seus dedos nos meus, e, no momento seguinte, tudo escureceu; uma sensação estranha — embora já destra — de ser fortemente puxada por todas as direções; uma falta de ar; uma pressão no peito; as órbitas atraídas para o interior da cabeça, para o cérebro, como um ímã; os tímpanos desconexos; então... meus pés cambalearam no asfalto, e enchi os pulmões com a brisa amena ao aparatarmos na rua das Alfazemas. Mamãe destrancou a porta, o pescoço virando para lá e cá à procura de olhos curiosos como os da senhora Cross, por exemplo, e Henry a abriu, a coluna levemente curvada em uma saudação.
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Hogwarts Mystery - os Senhores Comensais Vol. 02
FanfictionAnnellyze está em dívida, uma verdadeira luta interna onde os fatos penhoram Tom Servolo Riddle como culpado de uma SEQUÊNCIA DE ASSASSINATOS, e empecilhos diversos o sustentam como inocente, incluso seus próprios sentimentos a respeito dele. A mort...