I - O Garoto e o Lampião

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LittleHangleton

06 de julho de 1943


Após horas no sendeiro soalheiro e abafadiço de terra seca, e mesmo debaixo do céu nanquim que alvoreceu luzido e calorento, ilumino com o lampião uma casa quase camuflada em velhas árvores que projetavam sombras profundas, as paredes de pedra cobertas de musgo e adornadas em urtigas; hastes e teias de aranha alcançando pequenas vidraças grossas de sujeira. Não pude acreditar que alguém se dispunha a morar aqui, não neste estado. A porta parece esburacada por cupins e uma carcaça branca, seca e carcomida de uma cobra saúda-me daqui, pregada ali em forma de "S". Cheirava tão mal quanto os subterrâneos de Hogwarts, se não pior. Inevitavelmente, um resmungo me escapou a garganta, e não pude evitar o impulso que me fez apertar o punho livre contra a beira do nariz.

— Mas que droga, Antares, sua estúpida! — praguejou eu com impaciência, os olhos fechados, e apoiei o dorso do nariz. — Não é possível que todos se foram e eu esteja aqui atoa...

Alcancei o diário no interior do casacão e folheei-o com lentidão, à procura do pedaço amassado de pergaminho. Tinha de me certificar de que não havia tomado a avenida errada, talvez confundido a casa, mas a caligrafia levemente borrada, que não deixa dúvidas contudo, diz claramente Little Hangleton, e a descrição afirma que sim, tem de ser aqui.

Cogitei a hipótese — quase certa — de nada mais ser do que uma antiga casa velha e abandonada, e decidi que deveria sim entrar. Algo deixariam para que pudessem ser encontrados, e eu os encontraria neste novo endereço. A maçaneta, à contragosto, emperrou e recusou-se a solavancar. Forcei-a para baixo com ambas as mãos — o lampião sustento no polegar — e arrojei o corpo contra a porta uma, duas, três vezes. Rechaçou, porém, escancarou-se com um estrépito estridente, levantando uma nuvem carmesim de terra e poeira que quase me fizeram engasgar.

De forma que mesmo a ciência não possua plausíveis explicações, o interior estava ainda mais imundo que o lado de fora. O piso de pedra se perdera em algum lugar, e eu não sei dizer se foi no meio da escuridão da casa ou do carpete absurdamente preto de sujeira que se desdobrou por todo o chão. Fora-me preciso vários segundos para reconhecer aquilo como um hall de entrada. Uma casa tão apertada, que o hall, a cozinha e a sala tinham de dividir o mesmo cômodo. O teto estava coalhado em teias de aranha, rachaduras e manchas de umidade abancam-se detrás de molduras sem brio e, na mesa, mosquitos e baratas disputam restos de comida mofada e podre em meio as panelas com crostas. Uma clarita irradiava de uma vela medíocre derretida ao lado de uma pilha de correspondências fechadas, que fez-me questionar se a casa deveria mesmo estar abandonada ou não. Antes que pudesse cogitar melhor a respeito, percebo a silhueta de um corpo bodoso largado sobre uma poltrona, com cabelos e barba crescidos. Um cadáver, penso eu, até que abominavelmente se pusesse em pé, empunhando a varinha na mão direita e uma faca curta na mão esquerda.

— VOCÊ? — Berrou ele. — VOCÊ!

E arremessou-se ebriamente contra mim.

Pare! — ordenei. Foi quase como um assovio a driblar os lábios, escapando-os pela lateral. Não esperava, tampouco, que ele compreendesse.

O atípico então derrapou e bateu contra a mesa, lançando ao chão as panelas emboloradas, que caíram com estrépito que afugentou os insetos. Levantou-se apoiando na mesa e encarou-me pela abertura no coma, os incoerentes olhos rugosos com violentos fundos vermelhos estreitaram em desconfiança e desconfortavelmente mediram-me, inquietos.

Sinto apoderar-se de meu rosto um estranho formigamento. Este faz franzir meu nariz e ainda parece afetar o canto de meus lábios. Engoli seco — não de medo — na tentativa de reaver o controle de meus nervos e trinquei os dentes, o queixo erguido e a mandíbula tensa, um pendor repulsivo na boca. Até aí, estava claro para mim que ele não poderia compreender.

Hogwarts Mystery - os Senhores Comensais Vol. 02Onde histórias criam vida. Descubra agora