III - A Parábola dos Senhores Comensais

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Há silêncio: um breve silêncio eletrônico produzido pela vitrola que cospe poeira no quarto de mamãe, então as irmãs Andrews voltaram a cantar: "he's the boogie-woogie bugle boy of Campany B". Penso que está tocando por minha causa, para me impedir de ouvir outra vez atrás da porta, mas gjyshja fala alto; tão alto que não preciso sair da banheira desta vez, a porta entreaberta já é o suficiente, e mesmo as águas de sais atormentadas não podem me impedir de escutar.

Assim que mamãe irrompera a lareira, minutos mais cedo, gjyshja arremeteu-a em interpelações e contraposições, e mamãe mandou-me gentilmente — um sorriso arrependido e tristonho nos lábios — para que fosse me lavar antes do jantar, pediu um minuto a gjyshja para que pudesse ir ao quarto e desceu novamente, a música que acabara de colocar omitindo seus saltos às escadas ao voltar para a sala, e só percebi por que gjyshja falou bem alto: "ah, até que enfim!".

— ...a senhora me prometeu que não daria o jornal a Anne.

— E non dei. Heloisa Chrroch é uma mulherr de palavrra, mas você deverria terr me contade o que aconteceu com a sanguerruim em Ogwarrts, eu tinha de saberr...

— Mami, não fale desse jeito!

— ...imagine se acontecesse alguma coisa com An-nellyz? Minha neta, mon Dieu! Porr sorrte forram apenes aquele gentin.

— Mami, por favor! — mamãe conteve sua voz. — Murta, a menininha que morreu no banheiro, ela era amiga de Anne.

— Clarro que erra! — bradou gjyshja aos protestos, — olhe parra estas amizades! Tudo isso é culpa sua, non está pensando no melhorr parra su fille. Sabe o que pensarron dela se non arrumarmes isso? Pensarron que você non a crriou dirreito, e sabe quem serrá a culpada porr você non a crriarr dirreito? Moi!

Gjyshja bateu os pés — imagino que tenha sido ela —, e meu corpo arrepiou-se em meio a água quente, o coração aos solavancos, causando-me um incômodo desconforto. Mordi a língua entre os molares, os olhos lacrimejando de rancor, e abracei os joelhos, como se o ato de me enconchar pudesse livrar-me, de alguma forma, da ruína; as águas acalmando-se de mansinho.

— Eu te crriei da melhorr maneirra que pude, Leonorr. Non é minha culpa você serr desse jeito; non é minha culpa a família que você escolheu. Você non me ouve.

— Mas... — não sei dizer se mamãe simplesmente nada mais disse, ou se foi a infortuna vitrola que me abnegou de ouvir.

— É o que acontece quando nos torrnamos mami ton cedo: non sabemes como crriarr os filhos. Deverria terr me ouvide.

— Eu não trocaria a minha família por nada, mami — disse mamãe muito baixinho, a voz embargada. — Não tem nada de errado conosco.

— Clarro que non! — o tom era satírico, eu aperto a testa aos joelhos, minha mandíbula rígida. — Porr minha cause!

— Eu nunca quis que a senhora interferisse em nada.

— Orra, Leonorr, Marrëzi! Eu quem cuide de vocês, e tentei de tudo parra fazerr de Ar-r-riel um homem de rrecspeite.

— Meu marido é um homem de respeito!

— Mesme? — Apregoou, a voz atalhando. — Que tipe de homem de rrecspeite é esse que tirra a garrotin de uma moen, hum? Você erra uma crriance, tinha muito ainda o que aprrenderr.

— A senhora iria me vender a Pollux Black.

— E nossa família manterria a honrra e o status de purrossangue.

As unhas me afundaram na carne das pernas, o corpo tiritando à tormenta da água, e cerrei os olhos com fúria, o estômago contraiu-se numa câimbra que me forçou a relaxar o corpo. Um inspiro acovardado me encetou os pulmões em sobejo, e aperto as mãos na boca, prendendo-o lá dentro e as trovoadas na garganta, o ar me sufocando, fazendo o corpo remexer-se inteirinho de angústia. Respirei às grandes lufadas e golfejos, o peito revolto, as águas aflitas sob o lume da lua através das janelas — as velas haviam se apagado no banquinho e também nas prateleiras, lá longe, sem restar uma acesa se quer.

Hogwarts Mystery - os Senhores Comensais Vol. 02Onde histórias criam vida. Descubra agora