6. FODAM-SE OS SMITHS

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O ramo da família Cavalcanti que mora na Arlindo Gouveia 145 é carregado de segredos. Não são, nem de longe, a família mais rica do estado, nem a mais politicamente ativa, mas Laura e Humberto sempre parecem atrair figuras dos mais distintos espectros políticos e sociais para a sala de estar de seus apartamentos, no edifício Maria Carmen, assim como faziam nos anos em que passaram em São Paulo, assim como os seus próprios pais e tios fizeram durante décadas.

Artistas, políticos, empresários... Eram figuras habituais e isso tudo deriva deles: segredos, essa é a moeda com que a família trabalha, a arma com que destroem ameaças e o escudo com que protegem os seus. A tal "política de honestidade transparente", entre os membros da família, talvez fosse uma forma de compensar a neblina com que interagem com o mundo, mas é impossível ser transparente sobre tudo.

Haviam temas obscuros como, por exemplo, a morte de seus dois tios-avós logo após a redemocratização do Brasil. Otto sabia apenas vagamente, por meio de palavras sussurradas da boca da mãe para Mariana, que eles haviam sido responsáveis pelo convite da DOI-CODI, órgão de inteligência e repressão da época, à vó Eugênia e ao vô Francisco em meados de 73, de onde ambos saíram apenas semanas depois e com marcas psicológicas que os acompanhariam para o resto da vida. Outras menções ainda eram tabu inviolável, mesmo depois da morte dos avós, e todos os jovens Cavalcanti sabiam melhor que tentar cutucar aquele vespeiro.

Não era estranho, portanto, que Otto tivesse seus próprios temas intocáveis, outros nebulosos, isso era tratado com certa naturalidade entre eles. Não mentiras, eram tabus.

Era um segredo aberto que Otto odeia rock britânico oitentista. Não era um simples desagrado, era um abominar profundo e silencioso. The Smiths, em particular, sempre lhe causava náusea palpável. Normalmente, algo do tipo seria alvo de piadas e brincadeiras; com certeza, Mariana e Pepi colocariam um disco deles nas alturas ou Fábio cantaria para ele uma música em tom desafinado quando estivessem viajando de carro, apenas para tirá-lo do sério. Mas, mesmo sem motivo claro, havia um acordo silencioso de que aquele assunto permanecia quieto.

Respirando fundo, tentava conter o sentimento de vergonha que ainda ardia em seu peito e queimava seus pulmões, após os eventos dos dias anteriores, Otto se trancou no quarto e colocou os fones de ouvido com extrema relutância. Sabia que era uma forma de se torturar, tinha jurado que não iria mais fazê-lo, mas precisava de algo para tirar a atenção do inferno que crescia no peito e essa música sempre lhe deixava exausto demais para sentir qualquer coisa.

Alguém ter descoberto seu segredo, o das próteses, nessa altura? Não era um problema tão grande, principalmente sendo um amigo de Fábio que todos os adultos conheciam e adoravam. Sabia que ele provavelmente não iria falar nada e mesmo que o fizesse? Não era mais o mesmo menininho aterrorizado e traumatizado que fora em São Paulo, um que não sabia lidar com a exposição negativa.

Take me out tonight

Where there's music and there's people

And they're young and alive

Driving in your car

I never, never want to go home

Because I haven't got one

Anymore

A música atingiu seus sentidos como se respirasse fumaça, brasas e fuligem substituindo o ardor que ali estava, antes. Não, sabia bem que o seu problema era específico com Carlos, o primeiro rapaz conseguiu admitir se sentir atraído por, em meados do segundo ano... Então como lidar com os eventos que se seguiram à revelação, mais cedo na escola? O cuidado súbito dele consigo, o fato de ter ficado assistindo enquanto Fábio lhe ajudava a ajeitar as próteses, suas feições gritando desconforto e pena durante todo o tempo. Talvez a pior parte não tenha sido nem o momento, ainda era perdoável, mas a hora em que percebeu os olhos do outro pairando em si sempre que se cruzavam pelo colégio, tomando seus braços (ou a ausência deles) e passeando pelo seu corpo como se para perceber alguma coisa.

Um outro problema, talvez? Mais um resquício defeituoso?

As próteses, o acidente, todas as memórias emergindo dolorosas. Os olhos de Otto ardiam com lágrimas cuja presença se recusava a reconhecer.

Take me out tonight

Because I want to see people

And I want to see life

Driving in your car

Oh, please don't drop me home

Because it's not my home, it's their home

And I'm welcome no more

Era injusto, tinha consciência disso, que um gênero musical fosse banido da casa por um segredo que não entendiam, mas era algo que só tocou três vezes durante todos esses anos: uma única vez com sua mãe, no diálogo responsável pelo subsequente tabu musical na casa, e com o psicólogo em duas conversas separadas que não se repetiriam tão cedo.

Seu pai não sabia o motivo exato, nem seus tios.

Seus irmãos e Fábio (por vezes era um esforço, não adicioná-lo junto com os outros dois em uma única categoria familiar) não poderiam sequer imaginar.

Otto detestava essa humilhação quente que fervia o sangue em suas veias, odiava Carlos (ou gostaria de odiar) por ter lhe deixado nesse estado depois de quase um ano sem recaídas, mas odiava principalmente The Smiths.

Seu avô materno, Francisco, era completamente fascinado por rock britânico, era um dos seus deleites e, como fora nomeado Francisco Ottaviano (uma combinação de nomes terrível) em homenagem tanto ao homem, quanto a um bisavô paterno, sempre fora o neto favorito. Era ele que o avô levava a casa em Gravatá, em alguns fins de semana em que precisava se afastar para espairecer longe da capital, hábito que sua avó sempre se recusava a aderir.

And if a double-decker bus

Crashes into us

To die by your side

Is such a heavenly way to die

And if a ten ton truck

Kills the both of us

To die by your side

Well, the pleasure, the privilege is mine

Era uma ironia de merda, uma grande piada do universo, terem sido atingidos por um caminhão enquanto essa música maldita tocava no som do carro.



NOTA DOS AUTORES:

Um capítulo Ottocêntrico saído do forno para vocês!! O que acharam? E vocês que torciam/torcem pra Carlos+Fábio, como se sentem?

Desculpem a demora, mas, como já passamos da metade da história e tivemos alguns feedbacks, certas edições precisam ser feitas de maneira mais minuciosa 🥺

Daoist Sunshine diz: Pra coroar, tive que fazer uma pseudo-mudança esse fim de semana, o quê acabou atrasando a postagem mais ainda.

Perdoai.

Em outro tópico... esse capítulo foi difícil, pelo viés altamente introspectivo e intimista, espero que sofram tanto quanto eu sofri escrevendo. ❤️

Mianlong adverte que não se responsabiliza por nenhuma dor emocional profunda que esse capítulo possa causar.

P.S. Daoist Sunshine se responsabiliza integralmente pela dor emocional que esse capítulo possa causar.

risada maligna

Traços na PeleOnde histórias criam vida. Descubra agora