A passagem do tempo seguiu de maneira estranha, após o evento com Ottaviano. Não que algo extraordinário tenha se passado, mas a rotina de Carlos fora perturbada com sucesso por motivos que ele mal conseguia explicar.
No dia posterior ao incidente foi chamado à coordenação, onde foi-lhe explicado que a condição de Otto era conhecida pelo corpo docente e, por requerimento dele e da família, era mantido em sigilo, o que foi pedido que Carlos respeitasse. O jovem anuiu prontamente; sabia que já tinha invadido um tema sensível e não pretendia tornar a vida de ninguém mais difícil do que já era, mas não conseguiu fazer as coisas voltarem ao status quo anterior, nem o próprio Ottaviano parecia contribuir para tal.
Sabia que era apenas impressão sua, mas a sensação era de estavam se encontrando pelo colégio com uma frequência assustadora. Tinha um grau de consciência muito maior da existência do outro nos mesmos espaços, seguindo-o com o olhar mesmo sem consciência do ato e percebendo muito mais coisas sobre o rapaz de olhos cinzentos.
Francisco Ottaviano era um excelente aluno, adorado por mais de um professor e vários funcionários do colégio. Sempre era simpático com todos, emitindo uma gentileza silenciosa em suas interações de uma maneira que tanto lhe lembrava quanto parecia oposta à educação neutra de Fábio. Era visível que, ao mesmo tempo, parecia uma pessoa extremamente reservada.
Simpático, sim, mas sempre distante.
Várias vezes se pegou observando o Cavalcanti enquanto lia em um canto do pátio na hora do recreio, a testa levemente franzida se desfazendo em um meio sorriso acessível, quando era interrompido por seus colegas. Carlos também notou que seus braços se moviam de maneira suave e orgânica para a maioria das atividades, sem a constância inflexível usualmente associada com próteses robóticas, mas pareciam exigir um certo grau de cautela em funções mais delicadas.
Não era tão ignorante, sabia bem que essa percepção inflada do outro era fruto da atração crescente que estava se estabelecendo. Mas, por deus, como era difícil evitar cair nesse abismo quando via as reações do outro.
Otto parecia imperturbável para o resto do mundo; mas sempre que cruzava caminhos consigo, alguém que já havia lhe tirado a calma, era bem perceptível o brilho de irritação e constrangimento em seus olhos, as bochechas coradas em um tom quase imperceptível pelo estado de agitação. Era tão adorável...
... Que espécie de pensamento de dorama japonês era aquele, honestamente! Tudo bem que sua mente sempre gostava de florir um pouco as coisas, mas, para a sua exasperação, aquilo estava se tornando mais e mais constante com a passagem das semanas.
A percepção de como os sorrisos que Otto dava para o primo eram fofos e afetuosos, como ele desviava os olhos para a direita quando estava envergonhado, como as pernas eram bem torneadas debaixo do calção de educação física...
Ocasião que rendeu uma observação constrangedora por parte de Luciana: "o piu-piu quer fugir". Carlos não conseguiu olhar na cara da amiga pelo resto do dia.
O Carnaval foi uma pausa bem-vinda na obsessão do rapaz. Depois de ir para Olinda no sábado e na segunda, intercalando com Recife Antigo nas noites de domingo e terça, o rapaz estava arrasado na Quarta de Cinzas e com uma camada permanente de glitter em sua pele.
Mesmo assim, Bia ainda alugava parte de suas tardes para contar sobre as últimas novidades de suas duas alma gêmeas, Alice de Nova York e Mauro de Pesqueira (era tão improvável que chegava a ser engraçado. E absurdamente fofo). Assunto que, por bem ou por mal, fez com que seus pensamentos voltassem para Otto e seus tempestuosos olhos cinzentos.
... Deus, aquilo era uma doença? Porque Carlos definitivamente se sentia fora de si.
Lá por meados do fim de março, o calor abafado infernal de Recife nessa época do ano trouxe consigo uma dor de cabeça insuportável, mas a vida não podia parar e lá foi Carlos, se arrastando para a escola.
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Traços na Pele
RomanceEm um mundo tão próximo ao nosso, mas ao mesmo tempo tão diferente, onde uma pequena parcela da população manifesta vínculos especiais durante a puberdade, Carlos é apenas mais um romântico que desenha traços na pele, na esperança de um dia receber...