— Precisa parar de se culpar, sua mãe é uma doida controladora e você não será a pior filha do mundo se disser isso em voz alta. — Ana conclui com um milkshake de morango.
— Ela só tem a mim, o que mais iria divertir-lá se não fosse a minha vida para bagunçar?
— Ela não está bagunçando sua vida, está fodendo com ela e você é burra demais para perceber.
— Sabemos que você tem razão, mas dizer em voz alta não irá mudar as coisas.
Ela sempre tem, por isso é a minha melhor amiga desde o colégio. Ana e eu somos aquelas pessoas que se reconhecem quando se olham, eu era isolada e ela odiava humanos, deu super certo.
No último ano do colégio, fui obrigada a dividi-la com Andrés, na verdade nos tornamos um trio, a não ser pelos momentos em que ele comia seu lanche fazendo pirraça apenas para brincar com a minha dieta.
Bons tempos que nos renderam laços intensos de irmandade.
— Eu sempre tenho razão, agora tome a melhor porcaria da sua vida e, se vomitar, te mato.
Eram sem dúvidas os melhores milkshakes, cheios da gordura que não posso ingerir seguido do açúcar filho da mãe.
— Não podemos ser amigas se continuar me dando essas coisas... poxa, você deveria me ajudar a emagrecer e não o contrário.
— Você está linda assim. Não se odeie, está bem com seu corpo. O problema está nessa cabeça quebrada que insiste em ser o que os outros querem.
— Não são os outros, Ana, é o meu trabalho. Nunca vou poder voltar para a companhia se não estiver dentro do peso aceitável. Eles me fizeram, me viram crescer em cima das regras, não irão aceitar um único grama a mais.
— Então eles que se explodam, já está na hora de ser o que quiser, Helô, você tem 28 anos vividos em prol do sonho da sua mãe, mas e você? O que vai fazer se nunca mais estiver nesse padrão ridículo?
Nunca parei para pensar sobre isso, a única ambição que tive além do balé foi aos nove anos de idade, quando queria que a nossa piscina fosse um aquário. A dança esteve em meu sangue desde sempre, esse era o legado da família, que amorosamente Isabela chutou, eu não podia fazer o mesmo ou mataria a minha mãe, isso se ela não me matasse primeiro.
— Vou vender colar de conchas na praia, parece uma boa estratégia.
Ela sorri como quem sabe que estou perdida.
— Está cansada, amiga, precisa mudar os ares, de país, mundo, sei lá. Você precisa urgentemente sumir do mapa e ficar apenas com a sua própria companhia, entende? É importante.
Pondero sobre suas palavras, eu realmente anseio pela paz do nada, nada além de nada.
Silêncio, sem pessoas, empregados dizendo “sim senhora”, mãe louca gritando compromissos, professores me ensinando até mesmo como respirar.
Eu preciso do nada.
— Talvez um dia, mas agora é necessário que eu continue a seguir o cronograma e voltar aos palcos. Eu amo viajar, Ana, a dança me faz bem.
Seu olhar é quem quer segurar meu mundo nos braços e bater em todos que ousem tirar minha paz. Minha melhor amiga de cabelos coloridos e tatuagem em todo canto. Quem imaginaria que esse ser com vestido de bolinhas é a melhor promotora do país. Impossível ganhar dos seus argumentos.
— Você é como minha irmã mais nova, não espere doçura de mim quando te fazem mal. Aliás, como anda o “Zeca Urubu”?
— Jesus amado, pare de chamá-lo assim.
Eu gargalho com a péssima piada, um costume infeliz que nunca vai acabar.
— O cara é insuportável, tem cara de vigarista e ainda se junta com a sua mãe para acabar com a sua autoestima. Acho o apelido ótimo, mas posso ser mais criativa.
— Renato vai bem, obrigada. Cheio de trabalho como sempre, estressado e ajudando mamãe a me afastar dos doces, eles são uma dupla perfeita.
— Meu estômago se revira por te ver com esse cara, já sabe minha opinião sobre isso, né? Você merece mais.
— Não fale assim, Ana, ele me ajudou em um momento difícil sem meu pai.
— E te afundou em outro pior quando te obrigou a fazer um aborto, esse cara não tem nada de legal, Heloísa.
— Ele não me obrigou e nós não vamos entrar nessa discussão outra vez, escapei da mamãe para te ver, mas meu tempo já acabou.
— Ótimo, agora vou descontar meu ódio do "Topo Gigio" em alguém que não merece.
Outro apelido, um dia ainda vou soltar uma pérola dessas para Renato e tomara que Ana não esteja por perto.
Eu a amo e amo meu noivo, são partes de mim que não se encaixam e nem nunca vão saber conviver, mas eu não aguentaria sem um dos dois. Então é melhor aprender a aturar.
Saio do seu apartamento com a alma mais leve e o estômago revirado, apenas dois passos e despejo na lixeira tudo que tomei há poucos minutos. Nem sempre é necessário que eu induza o vômito, acho que meu cérebro aprendeu a processar situações como essa e me poupa o trabalho de enfiar o dedo na goela.
Dentro do carro, reúno todas as forças que me restam para não chorar durante a terapia, o único momento do dia em que me permito estar nua. Apenas eu, a Helô de sempre, que ama deitar de pijama e fazer coque sem pentear o cabelo.
A Helô que sente falta do pai, mas se culpa pela morte de um inocente ao qual escolheu não dar à luz. A Helô que finge ser calma, mas grita por dentro.
Sentada naquele divã eu posso ser todas as versões aterrorizantes de mim.
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Um Céu para Mil Estrelas
Romance⚠ Apenas capítulos para degustação, o ficou disponívelno wattp e agora você poderá encontra-lo na Amazon⚠ Sinopse: "Há algo faltando ou fora do lugar, não sei ao certo como definir. Na maior parte do tempo sinto que não me encaixo, que sou apenas...