PRÓLOGO

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O chão estava gélido; sentia o frio serpentear entre seus dedos, acariciar seus calcanhares e subir na pele fina do pé, criando caminhos por seus ossos até as coxas. As paredes brancas pareciam ir ao encontro da fêmea, a sufocando, conforme caminhava pelo salão silencioso, preenchido somente pelo tímido som do mar se quebrando abaixo.

O tecido do vestido branco esvoaçava para os lados conforme se movia; leveza e claridade na mais cara seda para resplandecer sua beleza pura, recomendara sua mãe. Não poderia discordar mais, no entanto. Ao olhar-se no espelho, momentos antes de ser levada, quando fitou o reflexo que o espelho lhe concedia, encarou algo próximo de um fantasma aterrorizado; e não estava longe de o ser, um fantasma, no caso.

Ignorou os soldados e cortesões que sequer pareciam respirar, a observando com total atenção e devoção. Fechou as mãos em punhos, puxando o ar para os pulmões superficialmente. Odiava aquele salão; o odiara desde que ganhou idade o suficiente para perceber que nele aconteciam todas as atrocidades cometida pelo rei de Hybern, seu pai.

Aquele por quem estava prestes a morrer, voluntariamente.

Para isso fora gerada, criada, cuidada; para aquele momento, para o Caldeirão.

O encarou, os lábios secos. Os olhos pretos, severos, a assistiam com notória ansiedade, o artefato mágico entre eles, como uma grande banheira pronta para lhe afundar até a pós vida.

E percebera naquele restante de vida que nunca vira nada além do furor naqueles olhos pretos, sempre astutos, como se pensasse sempre além. Conforme trajava o caminho até o Caldeirão, alívio despontava nos orbes de ônix, quase como satisfeitos em finalmente livrar-se daquele problema. Não ela, precisava pensar que não o era, mas sim a notória ameaça que despontara naqueles meses em Prythian.

E valia a pena? Fora o que pensou quando os passos estacaram ainda longe do destino. Deveria se sacrificar por alguém como ele? Dar mais poder e legalidade a alguém que só faria os outros sangrarem? Ele não estava interessado no bem-estar do povo, como sua mãe insistia em dizer. Se realmente estivesse, não os empurraria para uma guerra de interesses tolos.

Ele só estava preocupado com seu próprio traseiro. Feliz em sacrificar sua única filha para que seus fins compensassem os meios.

Sua vida poderia ter tão pouco valor? Poderia ter direito em tirar a vida da Quebradora da Maldição?

— Querida? — a voz dela soou pelo salão, cortando o silêncio, o veludo da voz parecendo rachar no pavor de algo poder vir a dar errado. Entretanto, continuou parada ao lado do Caldeirão, como uma guarda sombria, observando-a com avidez.

— Desculpe... E-e-eu... — não reconheceu sua própria voz; rouca, perturbada, completamente confusa conforme dava o primeiro passo para trás, sem desviar os olhos da figura de postura rígida em seu roupão azul-acinzentado com o típico cinto de pedras límpidas. Os olhos azuis da mulher a fitaram de volta, coléricos, silenciosamente ordenando que não ousasse.

— Eu não posso. — entoou em um fio de voz, baixo. Deu mais dois passos para trás, a assistindo franzir a testa, enrugando a tatuagem que estampava os estágios da lua; ouviu seu rosnar baixo, a pose da dócil sacerdotisa dissipando. Porém, mesmo sua mãe raivosa não a impediu de dar mais passos para trás, ganhando distância do seu fatídico destino.

Percebeu que não queria se doar, gostava de viver. E sempre fora egoísta demais para renunciar a algo que pertencia a ela; a ela e mais ninguém.

— Peguem-na. — Ianthe ordenou, a voz soando cruel como em poucas vezes ela ouvira.

Tentou correr, desistindo de olhar para o Caldeirão ou para sua mãe, dando as costas para seu destino. Não deu quatro passos corridos antes do primeiro soldado a tomar pelo braço; o forçou, cotovelando sua costela, socando com a mão livre o flanco desprotegido do homem. Outro se aproximou, e depois outro e mais outro.

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