capítulo 17

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Karol

Vou passando os olhos pelos rostos, conheço alguns nomes de peso e juro
que senti um leve mal-estar e as vistas dilatarem quando vi, bem perto do palco,
do lado esquerdo, ninguém mais, ninguém menos que Ruggero. Eu não poderia
estar mais afundada na bosta. Quase saí correndo.
Ele e Magno, ambos, sentados perto, encarando-me de um jeito sério e
desconcertante. Nos seus belos ternos, com boa aparência, na verdade os dois são
muito bonitos, ele segurando um copo de uísque. Não esboçou qualquer emoção
ao me ver. E eu, com o peso disso tudo, e ainda em ver ele ali, me vendo nesse
palco, completamente embaixo de tudo, diante de todo esse povo, sendo leiloada
como uma... qualquer.
Sinto minhas pernas fraquejarem, meu estomago revirar e minha mente dar
um nó. Meu Deus! Ele não sente nada por mim. Nada mesmo, nem desprezo. O
olhar dele me disseca, seco, frígido, indiferente. Volto a abaixar a cabeça.
— Você me faz repensar um monte de coisas. Mudar de opinião... — Minha
própria voz ecoa na minha mente. Uma lembrança.
— É? Como o quê? — A voz de Ruggero no meu pensamento, me faz engolir
seco. De cabeça baixa, começo a relembrar, algo aleatório, um momento de sete
anos atrás.
— Ah. Chupar manga sem precisar cortar. Correr pela manhã, usar
camiseta e jeans, comer pão francês, coisa que eu não fazia de jeito nenhum...
— Só porque é rica, não tem que comer somente essas besteiras frescas.
Você perde o melhor da vida. — Ele falou.
— É. Só comia nove grãos e...
— E agora come até cachorro quente com pão de não-sei-que-dia. — Ele
riu e me deu um beijo com a boca suja de ketchup.
— É. — Fascinada, lambi meus lábios, olhei para o cachorro quente na
minha mão. — Quem um dia diria que eu estaria numa esquina comendo
cachorro quente?
— Estou te colocando no mau caminho, garota da cidade, te arrastando
para o lado negro da força.
— O lance inicial fica em cinquenta mil. — O homem fala, e eu levanto o
rosto. Não tem como, meus olhos vão automaticamente para ele, para Ruggero.
Mas ele continua na mesma posição. Olhando sério para mim, toma calmamente
um gole de seu uísque e não faz nada quando um homem levanta a mão e o
leiloeiro diz: — Temos cem mil, alguém dá cento e cinquenta?
Meu queixo bate involuntariamente, minhas unhas cravam na palma da mão,
eu procuro Elvis e ele levanta a mão.
— Cento e cinquenta. — O leiloeiro grita. — Duzentos? Alguém dá
duzentos?
Um homem barbudo, bem mais velho, com uma barriga enorme, esparramado
numa poltrona, com um charuto na mão, não só levanta a mão como diz: “Meio
milhão”. Eu quase caio no chão. O pânico toma meu corpo e eu imploro a Elvis
com um olhar desesperado.
— Quinhentos mil. Alguém dá mais? Ouço setecentos e cinquenta?
Elvis levanta a mão dando setecentos e cinquenta, e eu torço: “Bate o
martelo, bate o martelo. Em nome de Deus, bate esse martelo.” Outro homem
levanta a mão e o lance vai para oitocentos, o velho do charuto fecha para um
milhão e eu perco minha respiração. Olho para a plateia. Uns grupinhos de
homens cochicham e riem entre si. Todos estão vendo meu terror, meus olhos
devem estar enormes e vão aumentando conforme os lances aumentam.
Ruggero, enfim, demonstra alguma reação quando Magno se curva para perto
dele, diz alguma coisa, aponta com um sutil gesto para mim e os dois riem. A
humilhação me consome e sinto as lágrimas arderem nos meus olhos. Por que ele
está assim? Eu sei que errei, fui horrível com ele, mas não demonstrar nada?
Olha a que ponto eu cheguei, onde estou e o que a vida me aprontou. E não
tive apoio de ninguém, não tenho nesse instante nada para me agarrar a não ser em
Elvis e seus limitados lances. Como uma garotinha assustada, me rendo e fico
com vontade de chamar meu pai. Os lances já estão em um milhão e cem.
— Um e duzentos. — Levanto o rosto e olho para um homem sentando num
sofá grande, na companhia de mais outros. Ele olha intrigado para mim, curioso,
como se perguntasse o que estou fazendo aqui. Eu o reconheço no mesmo instante.
Lionel ferro. O lance dele faz Elvis, Ruggero e o velho do charuto olharem  para ver quem foi. Lionel franze o cenho interrogativo para mim e eu movo os
lábios: “Obrigada”.
Ele é dono de uma agência fotográfica. Trabalhou muito tempo com meu pai
na Mademoiselle. É conhecido nacionalmente e até em outros países. Ele vive
pelo mundo emprestando seus dons para marcas famosas de roupas, perfumes,
tudo. Com um histórico de, inclusive, uma indicação ao Oscar de melhor
fotografia num documentário em que ele foi encarregado das filmagens. Lionel
acaba de voltar ao Brasil depois de uma viagem para o Japão. Por causa dessa
viagem, ele se afastou da Mademoiselle. Ele é belo, galanteador e foi, por muito
tempo, sonho de consumo de Beth, minha prima.
— Um e duzentos. Temos um e duzentos. Dou-lhe uma. Alguém tem...
— Um e duzentos e cinquenta. — Elvis rebate.
— Um e meio. — O velho do charuto resmunga.
— Chegamos a Um e meio. Os cavalheiros vão continuar na disputa pela
bela moça? Karol  é de boa família, aprecia um bom vinho e tem gostos
refinados. — Ele continua me apresentando e eu olho para Ruggero de canto de
olho. Agora ele não está mais sério. Vi algo como se fosse tensão em seus olhos.
— Um e setecentos e cinquenta. — Lionel levanta a mão, para meu alivio. E,
mais uma vez, muitos rostos se viram para ele. Ruggero está imóvel, mas noto um
nervo pulsa no maxilar dele, uma expressão carregada estampa sua face e os
olhos têm um brilho estranho. Uma emoção enfim? Raiva?
— Chegamos a um e setecentos. Dou-lhe uma, quem dá mais? O leiloeiro
canta e eu olho implorando para Elvis. Minhas mãos pingam de suor. Nunca
passei por algo tão tenso.
— Um e oitocentos. — Elvis grita chegando ao dinheiro que tenho no banco.
— Dois milhões. — O velho levanta a mão, sorri para mim, pisca e apalpa o
volume nas calças. O desespero me atinge. Olho para Elvis e faço que sim. Eu
consigo levantar mais ou menos cem mil.
— Dois e cem. — Elvis fala e no mesmo instante Lionel rebate:
— Dois e meio.
Controlo minha respiração, as batidas do meu coração ecoam como tambor
nos meus tímpanos.
“Bate o martelo. Bate o martelo.” — imploro em pensamento, de olhos
fechados.
— Três. — O velho grita e eu soluço.
— Três e cem. — Lionel rebate.
— Temos três e cem. É uma disputa acirrada. Dou-lhe uma, alguém dá mais?
— Olho para Lionel , ele já está de pé, olhando sério para mim. Isso chama a
atenção principalmente de Magno e Ruggero que tentam disfarçar, mas a todo
instante olham para Lionel.
— Cinco milhões. — O velho grita e antes do leiloeiro falar alguma coisa,
Lionel faz a réplica:
— Cinco e duzentos.
— Cinco e meio. — O velho rebate e, para meu desespero, Lionel olha para
mim e dá de ombros dizendo que acabou para ele.
“Por favor!” — imploro movendo os lábios. Ele pensa, passa a mão no
rosto, nos cabelos, assente e fala:
— Cinco setecentos e cinquenta.
— Sete milhões. — O velho grita e Lionel exala profundamente derrotado.
“Por favor.” Eu imploro. Já sinto as lágrimas.
— Dou-lhe uma. Sete milhões para o cavalheiro aqui. Alguém dá sete e
meio?
— Por favor. — Nem movo mais os lábios, já posso ouvir minha voz, olho
apelativa para Lionel e ele dá de ombros e faz que não dá mais.
— Dou-lhe duas.

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Ah pobre Karol está se sentindo tão humilhada

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