As costas da cobra

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Fui quando pequeno para longe. Curtas pernas cobrindo longo espaço, ainda que sentado em um carro. O caminhão da mudança ia além, com tudo que não lembro, agora que o tempo é outro. O pai, ao volante, segurava com suas mãos de lobo o couro como quem deve, e como deve. A mãe, ao lado, dormia e acordava, balbuciando sobre o enjoo. E eu, sentado atrás com minha irmã, olhava o mundo com os olhos enjoados da mãe.

O mundo derretia-se sob o vidro da janela, restando como sugestão e fascínio para mim que nada entendia. Mãe dizia para não olhar pra fora, porque era o verde (cor do enjoo) que me deixava assim. Baixei o vidro, apoiei a cabeça como que se invencível e restei ali. Fiquei ao vento que soprava, puxando meus cabelos pra trás, apontando-os de onde vim, de onde saía e pouco lembrava.

Estava despatriado. Tinha quatro anos com cara de menos e sobrancelhas franzidas demais. Poderia dizer que estava triste, mas não lembro de coisa alguma e tampouco da tristeza. Como é preciso de história pra ter história, resta a nós dois a mentira e o diário.

Saía da cidade grande que nem é tão grande pra ir para uma cidade pequena nem tão pequena. E nesse espaço de nem-nems, descarreguei o caminhão de mudança na primeira casa que ficamos, em um morro de pedras coloridas, cinzentas e rosadas, brilhadas ao sol. Era um morro torto, como costas de uma cobra que começou a subir a colina e esqueceu de subir e também esqueceu que era cobra, restando colina. Uma grande floresta cercava todos os lados do morro, onde os cavalos de um dos vizinhos corria ao pé das árvores e só voltavam quando ele, do alto do seu muro, entoava o canto. As árvores mais longas, finas como pernas de criança plantando bananeira, dobravam-se ao vento como se caíssem.

Já que tudo parecia mágico, imagino que se eu estava triste, não fiquei mais.

Meu pai carregou as caixas, amaldiçoou deus, o mundo, a nós, e foi dormir. É preciso repetir que meu pai é um lobo, então, pra ele, são as noites e as luas que melhor cabem. De resto, fica ao escritório de namoro com a fechadura, deixando pra ser pai apenas quando o imagino. A minha mãe é uma raposa bem alaranjada de sardas, com cara de quem cavou e achou algo feliz, ainda com a terra presa no rosto. Ficou sem emprego um tempo para cuidar dos filhos, mordeu-se muito de arrependimentos mudos e a culpa de pensá-los, mas manteve-se bondosa, ainda que cansada.

A minha irmã deixou para o tempo aprender a gostar de mim, então naquela tarde de mudanças ainda imperava a impaciência e os altos muxoxos. Carregava suas caixas sempre suas e encarava de olhos duros os muros dos vizinhos e a casa longa de tijolos alaranjados que ficava do outro lado da rua. Ainda que um pouco mais velha, ela é uma chihuahua pequena de muitos dentes e olhos sempre atentos, prezando pela limpeza e pela ordem das coisas que cabiam em seus olhos.

Eu, ao pé do morro de casa nova, com o sol no pelo e a promessa de nada ser como antes em um mundo vivo, ainda que muito novo pra ter um antes mas condenado sempre a temer o depois com os olhos do passado, era algo entre um cachorro, um lobo e uma raposa. Era, aos pelos, marcado como da família, ainda que tão distante de ser um assim como dos outros. Ao lado do olho esquerdo mora uma cicatriz de quem foi muito longe e se machucou. Na bochecha outra de quem ficou muito perto. Era assim, olhos escuros, focinho e pernas que souberam rápido demais o caminho pra floresta.

No ventre da mata fiquei de gengiva escura, olhos cansados e a sensação de que algo importante havia acabado. A terra era barrenta, vermelha-escura no pé da floresta, com marcas de pneus grossos. Entre as árvores, era marrom mascado, com marcas de botas. O silêncio zanzeava em um zumbido inexistente, que torna-se palpável e só se sacia quando findado e morto pelo som de algo. Ali, às margens de um espaço que não se acaba, longe de onde vim e costeando a casa em que me mudara, me senti em paz, às pátrias de mim, sozinho.

Fiquei assim escondido aos arbustos, escutando pernas desconhecidas que andavam no silêncio e uma sombra ao longe que parava para olhar pra trás. O sol brilhava contra seu corpo e a tarde esculpia em minha memória as formas do sentimento de impotência, mesclando-os ao sagrado. Na floresta estava alguém que não queria ser incomodado e, aos meus olhos, pensei que ele deveria ser deus. 

O canto da garganta rouca do meu vizinho entoou e a marcha dos cavalos reverberou pelos troncos, pelas folhas e pelos galhos. Rasgando o passo do chão, os cavalos relinchavam descendo a encosta enquanto o céu deixava de ser azul para rosear no frio que escorria.

Era a noite que chegou, a lua que prateava e pintava todas as pedras coloridas da mesma cor. Os cavalos dormiam, o caminhão da mudança se foi embora vazio e a nova casa ficou com nós. Eram três quartos, então fiquei em um canto meu ainda com cheiro da floresta e de medo na roupa. Menti que já havia tomado banho para a porta do escritório do meu pai e escutei as teclas do computador por trás dela concordarem em resposta. Minha irmã fechara-se também em seu quarto, a cabeça cheia da escola que, sem pés, não se mudava, e em seus amigos, com pés, que nada podiam fazer. Quieto e na ponta dos meus, fui pra cama.

Mais tarde, mãe passou pra me ver e fiquei de olhos fechados, fingindo que dormia e pensando no cheiro da floresta. Mãe então chorou, lavando a terra do rosto. Abri um olho e perguntei o que acontecia.

"É nada, é nada. Já foi embora"

Fui dormir pensando se ela queria ter ido com o caminhão e se teria nos levado junto. Dormi um pouco mais raposa, querendo parecer seu filho para que se fosse embora, precisasse me levar nos seus braços.

A cidade em que não existo maisOnde histórias criam vida. Descubra agora