O fio partido

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Andávamos abaixados entre os carros estacionados, usando casacos grossos com direito a um capuz cobrindo os cabelos. Úrsulo comentou que no salão do hospital antigo seria realizado um comício preparatório para as eleições municipais do próximo ano e, como seu pai era um dos dois candidatos, precisávamos de toda a discrição. Além de que nos divertíamos pensando ser agentes secretos ou detetives à beira de algo maior que nós.

Ia na frente, os olhos dedicados escapulindo para espiar as escadas que levavam ao cinema. A passarela que levava ao salão por uma entrada externa ia logo acima das escadas, nos impedindo de ir testar a porta e se aventurar por meio das macas e seringas há tempo esquecidas. Suspirei aliviado, ainda com a imagem do escuro e dos filmes não passados, a surpresa pendurada na língua a ser contada para um Úrsulo que não estaria me esperando. Ainda tínhamos esperança de Vitória, e haviam coisas que eram melhores caladas.

Fomos juntos para a porta principal, sob o som dos gritos animados nascidos das gargantas eleitorais. Os carros chegavam às buzinas, as bandeiras agitadas ao vento. Bebês aos colos ostentavam grandes adesivos com o número do partido já cobrindo o seu coração. Os pais olhavam suas crias com orgulho e sabiam, pois precisavam, que tudo era bom. Do estacionamento, podíamos ver a cabeça do pai de Úrsulo e os pelos que dela já faltavam pela idade. A mão estava sempre estendida ao cumprimento e o largo sorriso deixaria qualquer dentista às lágrimas de felicidade. Perguntei ao urso se o pai dele recebia votos de muitos dentistas. Ele assegurou que de todos eles.

O sol de inverno era leve, iluminando um azul gélido que tão bem poderia ser eterno. Tiramos os capuzes e toucas assim que entramos no prédio, cantarolando de animação. Imitamos Heitor tentando esconder o pescoço longo atrás do carro e torcemos para que ninguém percebesse os arranhões feitos pelo chifre desastrado de Breno. Cumprimentamos o pombo da recepção, acenamos para o segurança ao fundo do corredor e subimos ao segundo andar.

Rino nos liderava com o sangue da terra esculpido nas feições e a certeza de algo antigo. Passava a língua nos lábios, leve, deixando ao molho algo pra ser dito.

De frente para a porta do museu, espiei para as escadas que levavam ao terceiro andar, a lembrar de Roberto e o seu novo violão tocando notas doídas de serem escutadas. Temi encontrar o professor ariranha, ainda vivo me esperando para uma segunda aula prometida que nunca fui. Sem mais tempo a segurar, segui rapidamente para dentro das portas cinzentas do museu, bem guardando o nome alemão preso em sua placa.

Os pés estalaram as longas tábuas de madeira escura, bem envernizadas e ainda com o incessante gosto da limpeza. Ao seu som, a canguru responsável por cuidar dos visitantes deu um alto muxoxo nos vendo entrar. Disse que era sábado e o seu trabalho deveria ser de canguru tranquilo, então caso escutasse uma voz que achasse alta demais, mandaria aos chutes nós todos embora. Concordamos de cabeças trêmulas e a deixamos a sós com seus pequenos óculos quadrados e a televisão que nunca desligava, contando que o mundo era por todo novo.

O museu contava com cinco salas dispostas em um largo corredor, todas dadas ao lado esquerdo. Nelas, três compridas janelas iam da altura dos joelhos até o topo do teto baixo. Do lado de fora, flores vermelhas ainda dormiam num canteiro preso. A luz de sábado entrava num deleite, derramando-se com preguiça do dia que começara. Iluminava o metal das pontas de lança, cobria de sombras quadros com fotos de tatus, tamanduás e araras que eu bem lembrava da minha primeira visita quando menor. Rino, no que restou de um suspiro, disse que aquele era o povo daqui, antes que se chegassem os europeus. Eles pareciam tristes no cinza do foto.

O cervo contou que na sua cidade havia uma aldeia do povo, remota nas montanhas enflorestadas, sob o cuidado de uma prefeitura de fazendeiros lá longe no centro urbano, de chão de pedra e pouca árvore. Disse que depois dos europeus, eles se refugiaram para onde o olho não alcançava e, de noite, quando não há quem descanse, podia-se escutar os tiros e gritos dos fazendeiros desembestados. Clamavam-se terras sem ver que a terra estava toda por aí.

A cidade em que não existo maisOnde histórias criam vida. Descubra agora