Pesei tanto as palavras que todas ficaram em mim, na balança da língua. Aproximavam-se dos lábios, mediam-se umas as outras apertando bem as costas e endireitando a coluna, pra ver qual que era enfim maior e pronta pra sair. Se atamanhavam até que já não fosse mais hora de se dizer. À parte a isso, a escola continuou inquebrável. Tarcísio e Caio encontraram um no outro motivos de se ficar perto. Esqueciam de nós para então lembrar com fúria, sem razão, mas com a certeza de saber o que fazer. Entre os tantos dias, perdi muitos que já não lembro, sozinho, ao canto.
Heitor, já não próximo, ficou amigo de um bisão que havia acabado de entrar na escola. Tinha o pelo escuro, os olhos negros estrelados como duas bolas de gude. Era quieto como eu, e nós dois também ficávamos perto ora ou outra por saber entender silêncios. Se chamava Breno, tinha muitos amigos além-escola e chorava de raiva no banheiro por conta de Tarcísio. Era agora tão amigo de Heitor que pus pé pra trás, sem saber que no coração se cabe mais de um de cada vez. Amargo, escondi de mim as memórias do acampamento, os risos à sombra de Sião, e os dias que eram nossos porque a memória ri ser.
Nesses tempos a sós, percebi ter muito mais fome do que lembrava ter. Passada as férias e o peso da floresta, cresci pra não ser mais lobo pequeno. Pelo preço de crescer, meu corpo exigia que tudo me escapasse o controle. Bastava pouco para encontrar raiva a ser amortecida na ponta das garras, as presas que precisavam ser escondidas ao escutar os professores. Sabia mais do que muitos palavrões e às vezes precisava ir no banheiro para respirar fundo — sob o som dos soluços de Breno — para ver se não arrancava às mordidas um braço de Caio. E sem morder, a calma aos poucos encontrava o caminho das mãos e dos olhos até que fosse verdade.
Era tanta fome e pouco o dinheiro que eu rondava as latas de lixo durante o recreio, espiando a comida quase inteira que as mãos abastecidas esqueciam de comer. Sentia o cheiro, a saliva suspendo as palavras na língua e a dúvida se alguém me veria resgatar a comida. Ainda assim, o medo vencia e tomava as rédeas para que o orgulho não subisse ao cadafalso sob as vaias e os olhos dos meus colegas. Algo, ainda assim, era enforcado: uma inocência clara pesada ao bolso.
Nem as palavras que padre Antônio me ensinava ajudavam quando o corpo dobrava em sangue fervido. Caio, filho de dentistas, sorria com a fartura presa nos dentes. Tarcísio, filho de vereadora, comia ainda mais por conta do tamanho. Roberto, filho de veterinários, só se bastava em ser filho. Breno, filho dos seus pais, e eu, filho dos meus, encontramos um no olho do outro o cuidado de ser do tamanho errado.
Em um dia de descuido, o bisão deixou cair o pote cheio de salgadinhos ao se assustar com o sino. Caio pisou em alguns com os pés de sapo e riu cheio, enquanto Tarcísio xingava o amigo dizendo que aquilo era demais. Como demais? Qual era a linha que traçava as margens dessa terra arrasada? Ajoelhei-me quieto e ajudei Breno a juntar as migalhas, esperando que no fim ele me desse algumas. Ele agradeceu, mas bastou isso.
De volta para a sala, as aulas foram como se as mesmas até que nós de dedos encontrassem a porta, a anunciar uma professora que não a nossa pedindo por licença. Seus olhos investigativos, escondidos atrás de óculos bem redondos, varriam o rosto de cada um à procura de algo caro. Da janela da sala dos professores, viu os salgadinhos, os pés que pisavam e o corpo que se abaixava para ajudar. Era uma coala pequenina, bem curvada e de rugas no rosto que contava com a voz responsável a cena que havia visto.
Se deu feliz quando encontrou Breno, ao carinho em seus pelos. Caminhou então até Roberto e anunciou aos céus que o garoto, bondosamente, tinha no seu coração o que era preciso pra se nascer a ajuda. A criança assustada disse que não era ela, e a professora se surpreendeu e varreu novamente a sala, os olhos apertados do querer até se encontrarem com os escondidos meus.
A sala era então pouca para os pequeninos passos. Veio até mim com a certeza da justiça e disse maravilhas, cada gota de saliva que voava pela boca carregando barcos explorados que anunciavam para a terra: ainda há glória! Pediu palmas de todos para mim e contou para Breno que só se bastava um bom amigo assim para se ter para a vida. Eu, de olhos assustados, queria lhe dizer que só estava com fome, que ser bom não era algo para mim. Era nem lobo nem cachorro, nem filho de dentistas, vereadores ou veterinários. Era filho de uma raposa que não podia mais fugir e um lobo que lembrava e só isso me bastava. Nem a fome conseguia ser mesmo fome, mas uma esperança que a comida pisada me despisse de ser a criança que não comia no intervalo, para que, ainda que por um dia, não fosse assim tão diferente e fácil aos olhos de Tarcísio e Caio.
Afundei a cabeça na mesa pensando que ia chorar, mas não havia lágrima que soubesse o caminho do olho. A professora coala, surpresa do sentimento, me agradeceu pela emoção e foi embora na ponta dos pés orgulhosa do seu dedo que aponta.
Quando a aula se encerrou, todos guardaram os seus materiais e começaram a sair. Esperei um pouco e levantei a cabeça da carteira, os lábios marcados das presas, lentamente se preparando para partir. Breno, que me esperava, veio de passos decisivos e ficou perto, a boca entreaberta em algo que não havia se decidido. Heitor, alguns passos atrás, não sabia ainda qual palavra que se curava a distância.
Antes que coisa fosse dita, Tarcísio voltou para a sala, no meio de um elogio e um pedido de desculpas que não escutei. Virei com o focinho arreganhado, os olhos escuros da floresta. Rosnei xingamentos para que sua mãe vereadora passasse o resto da vida em desgraça, com palavras que já não precisavam mais de peso, mas que flutuassem no ar e encontrassem alguém para se enterrar com fome e desorgulho. A girafa esqueceu do arrependimento para pular em mim, a razão finalmente vestindo as patas que me esmurravam. Mordi seus braços, chutei a sua barriga, rasguei parte das minhas roupas. Brigamos até que um professor, ainda novo e que não sabia o rosto, nos separou sob a pena de levar também alguns pontapés.
Naquele fim de manhã, as marcas das patas no rosto, fui tomado pela curiosidade do calor que inchava meu olho. As palavras que me disseram, a tristeza que me tomou, os suspiros da minha mãe, tudo passou como um sonho não meu, uma vida que se imitava, repetia e ficava por desprezo pelo que um dia foi.
Lembro de uma hora rir, em algum olhar, sob os olhos de alguém. Era um riso que tremia a barriga, que subia empurrando as palavras sem medida, que não sabia o que era sapo, bisão ou girafa. Ri imaginando o que a coala teria dito ao saber que em meu coração havia algo pra se fazer nascer a desunião. Ri porque vi, entre cada mordida que conseguia dar nos braços de Tarcísio, mais dentes de alívio surgirem no sorriso de Breno.
As portas do banheiro fechadas, a floresta que não me aceitaria se houvesse raiva. Vi o lobo em mim se sentar ao lado direito do coração, a boca sangrando, satisfeito com as portas que se abriam.
Assistimos ao cadafalso e, nas últimas palavras da inocência implorando por vida, gritei mais alto que ninguém.
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A cidade em que não existo mais
Mystery / ThrillerCanis conta sobre quando se mudou, sobre amizade, morte e o espaço entre tudo que há e a floresta em que nada resta.