Alícia era uma hiena de vários dentes que me atraía sempre os olhos. Gostava de vê-los ali, à mostra e ao riso se seus olhos estivessem fechados do sorriso e bem acompanhados de rugas de felicidade. Quando alegre, Alícia esquecia-se do horário e bebia um pouco mais ou caprichava no jantar e comia bem até adormecer. Sentava-se no sofá, esticava as duas pernas e, em tempo de pegar o último trem ao sono, viajava em nuvens inalcançáveis até escutar o barulho do carro subindo o morro.
Desde que começou a cuidar de mim e da Tuntun nas noites que minha mãe estava na faculdade e o pai sabe-se lá a terra aonde, eu e Alícia entramos em uma corrida para que as orelhas descobrissem o o som da chegada da minha mãe em casa. Ela pra se cobrir, eu pra ser descoberto. Se encerrava a teatralidade, apagavam-se os holofotes, desciam as cortinas e os atores restavam nos bastidores com o espelho e o rosto de algo que se perdeu pra sempre.
Às vezes, quando a lua subia demais ou o sol ao dia lhe torrasse a cabeça, Alícia vinha de dentes afiados. Sumiam as rugas, os olhos se esbugalhavam, o sorriso se mantinha. Corria desordenada, apunhava a grande faca da cozinha e vinha perto de mim e de Tuntun contar quão macia era a carne. Dizia coisas que até então não tínhamos motivo pra adivinhar: quanto tempo podíamos se arrastar sem os pés? Tinha grito se o pescoço estivesse cortado? Do que seria de nós sem a hiena?
Era pequeno e assustado, assim como de alguma forma sempre fui. Corria pela casa aos gritos, trancava-me nos quartos e no banheiro, fugia ao quintal, pulava o muro para o terraço das vizinhas galinhas e ficava ao escuro imaginando se Tuntun também tinha conseguido fugir. Se os vizinhos ligavam para casa, Alícia atendia com voz de amor e contava que as crianças estavam exagerando na brincadeira e que nos daria uma bronca. Ao frio, não conhecia a justiça para reivindicá-la.
Então a mãe chegava e os olhos de Alícia se seguravam nos nossos. Víamos a casa dela ali da cerca da nossa, conhecíamos o rosto de sua mãe, o gosto do seu bolo e como gostava de sua filha jovem e feliz. Ainda mais, sabíamos que o medo de contar era maior do que o de aguentar. E assim se foram os anos, os dias se misturando. O canto do vizinho ao muro chamando os cavalos anunciava: é hora da hiena, que se sirva o banquete. E nós, deitados na mesa, escutávamos os talheres sendo afiados.
Ainda assim, Alícia hipnotizava, criava um caminho que tornava difícil odiá-la por completo. Ela contava seus dias na escola para minha irmã, se demorando em cada detalhe. Cozinhava para nós toda noite e trazia brinquedos de desenhos animados para que eu brincasse. Não era muito chegada em leitura, mas não tentava me atrapalhar e até disse vez ou outra que gostava de me ver lendo.
Após quatro anos juntos, os dias misturaram-se. Até quando Alícia não estava presente, mantinha-se nos olhos em que víamos o mundo: sugerindo o medo, não confiando. Tuntun começou a gostar dos filmes de terror que a babá assistia, a procurar o paranormal e se deitar com medo do escuro. Eu herdei os jogos e brincadeiras que renderam muitas tardes felizes com meus amigos Sião, o leão, e Heitor, suposto avestruz, num lugar só nosso que não alcançasse o brilho da faca ou a promessa da noite.
Ainda que tudo fosse incerto e a maré da sua raiva ora viesse ora voltasse, Alícia começou a se tornar mais sombria após tentar um ritual para falar com fantasmas na nossa sala. Esperou o carro dos meus pais sumirem na curva, convidou as amigas que estavam escondidas em sua casa e subiram à nossa sala de luzes desligadas, as velas trêmulas reinventando com as sombras os cantos da sala. Tuntun foi se esconder no quarto e eu, sem saber muito de nada, deitei no sofá com minha coberta, de barriga para baixo e rosto pressionado contra a almofada, por todo querendo saber.
Colocaram um tabuleiro deitado no tapete, sentaram-se ao redor, deitaram um copo sobre as letras e números ali cravados e fizeram perguntas ao ar, esperando dele o mundo. Aos poucos, seus dedos sobre o copo apontaram um nome aos risos nervosos: Joaquim. Disse que meu bisavô se chamava assim e elas aos gritos perguntaram se estava morto. Contei que achava que sim, mas nunca havia o visto e duvidava muito que ele ia querer vir como fantasma dizer algo pra mim ou pra elas. Mais coisas a se fazer, eu disse. Elas ignoraram e debandaram assustadas para suas casas e confortos, sob os protestos de Alícia que queria saber mais.
A hiena riu, espumou e gritou para que eu a ajudasse, mas eu não queria saber nada do meu bisavô. Ser tímido se estendia a conversas com fantasmas também. Naquela noite e nas próximas que se seguiram, Alícia nos perseguiu com mais fúria, esmurrando as portas com a faca, rindo com o uivo do choro, estralando a língua de desgosto ao som do portão se abrindo.
Eu, por todo silêncio, não dizia nem aos amigos o que a noite guardava, ainda mais aos olhos cansados dos pais que chegavam tarde, de paredes nos ouvidos, e cabeças suplicando travesseiros. Foi tanto o tempo no banheiro, de rosto encarando o espelho, que me pareceu o resto um sonho: a minha amiga cachorra brincando algumas casas a cima, Vilmar e Almira sentados na calçada jogando conversa ao alto, os cavalos na porta do segredo da floresta.
E assim se fez a ideia. Abri a porta como se abrisse a boca, escutei os passos de Alícia na sala e corri pela escada de limo como se ainda seguisse minha mãe de patas pequenas. Escutei a hiena rir e gritar casa adentro, vindo desembestada na minha direção quando pendurei-me no muro para pular mato adentro. Fui abaixado e silencioso no escuro da noite, espiando Alícia de pé no muro de telhas laranjas, esperando a nuvem sair da lua pra que o brilho me denunciasse.
Quando veio, pulei o muro da casa ainda vazia da cachorra feliz, arranhando os braços para que subissem, me aguentassem o peso e o corpo não acabasse ali. Alícia pulava ao mato com um riso baixo, a faca ao lado do corpo. Cruzei o gramado em poucos passos, os passos de raposa não deixando-se segurar em chão que fosse. Arrastei o portão de metal, corri a rua da terra do morro e pulei entre as plantações de tangerina, pra se arranhar entre os arames da cerca e entrar na floresta de pernas e braços sangrando.
Nada mais da Alícia, talvez ela apenas tivesse voltado pra se contentar em assustar Tuntun.
Quieto nos arbustos, escutava apenas a respiração minha e de algo que fosse o que fosse, continuava ali. Me observando desde quando desci do caminhão de mudança, quando aprendi a ler e toda vez que lhe procurei sem saber. Algo que sabia o rosto de todos nós e restava como sugestão aos que não conheciam. A lua não passava da copa das árvores, tudo era sombra. Descobri que antes da Alícia, só havia o medo de ficar sozinho, e perto dele, ela não me parecia nada a não ser uma cópia de um terror qualquer.
Corri de pernas largas, o choro escondendo o rosto. Entrei em casa e vi Alícia fazer o que ela sempre fazia, os olhos ainda na floresta. Tanto foi o nada que o riso parou, e os dentes da hiena finalmente se guardaram na boca.
Quando a mãe chegou em casa, nada quis dizer. Fui ao quarto e dormi como se continuando todo dia. Sião e Heitor pareciam mais felizes na escola, os gibis mais engraçados. À noite, mãe avisou que Alícia não viria mais cuidar de nós e Tuntun era grande o suficiente para olhar pelos dois.
Vi como minha irmã respirava e pensei que o meu corpo também seria mais leve se tivesse contado.
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A cidade em que não existo mais
Misterio / SuspensoCanis conta sobre quando se mudou, sobre amizade, morte e o espaço entre tudo que há e a floresta em que nada resta.